Purga em Angola, de Dalila Cabrita e Álvaro Mateus

Ler este livro foi, para mim, uma viagem infernal, dolorosa, porém de grande lucidez. Aquela lucidez absolutamente crédula do poder regenerativo e re-estruturante da verdade. Não a verdade absoluta, única, universal, que não existe, antes a simples verdade dos factos, e mais importante, as verdades sentidas, sofridas na pele por quem viveu esses factos; aquelas verdades há muito caladas e engolidas, presas na garganta, amordaçadas, e que finalmente vêm à tona.

Ler este livro representou, também, e definitivamente, o fim de um mito - um mito que já vinha morrendo aos poucos, mas que, talvez, ainda mantivesse alguns restos teimosamente agarrados à vida. Eu cresci a ouvir o Zeca cantar o "homem novo do MPLA". Cresci com a ideia que de facto o MPLA era o movimento popular de libertação de Angola, levando realmente à letra o significado destas palavras tantas vezes ditas e ouvidas. A autonomia e a independência de um povo, de um país, contra o Colonialismo, esse monstro escravocrata e opressor. Cresci a defender com veemência, para quem me quisesse ouvir, que a arrastada guerra-civil pós-independência, em Angola, se devia principalmente ao estado de colapso social e económico que anos e anos de despotismo colonialista tinham provocado. Já tinha idade para saber que só nas estórias infantis é que há um único bicho-papão.

Os acontecimentos à volta do 27 de Maio são uma ferida gigantesca no coração não apenas do país, mas do mundo inteiro. E para sarar uma ferida, há que deixar sair o pus. E o pus, neste caso, são as memórias, os gritos de sofrimento que se calaram durante tanto tempo. Isto é como um trauma social, um caso colectivo de stress pós-traumático. Por mais que doa, tem de ser falado, sentido, expressado, revivido. Só depois do sofrimento se libertar é possível o alívio. O sofrimento está lá, escondido, calado, se não sair, infecta. Como um verdadeiro abcesso. Tantas vezes a história individual é paralela à história social. E os processos, tão semelhantes.

E depois há aquelas críticas idiotas de que o livro é muito violento, para quê estar agora a mexer na lama, o que passou, passou, foram excessos, a culpa descartada sempre para cima de outros. É incrível a conspiração de silêncio que persistiu (e ainda teima em persistir) à volta de tudo isto. Não podemos ter medo das palavras, de chamar os bois pelos nomes. A violência é das acções e de quem as pratica, não de quem as reporta e as testemunha.

Este livro é um verdadeiro grito na cara desse silêncio teimoso, envergonhado, desse silêncio que pensa que consegue apagar uma memória apenas por a calar. Mas o incrível é que consegue. Haja sempre aqueles que não se calam, e que têm a coragem de subverter o esquecimento. De gritar por todos aqueles que já não podem ou que perderam a voz.

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