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Uma Mulher De Palavra

Era uma mulher de palavra. As palavras nasciam-lhe nos braços e derramavam-se pelas mãos abertas. Fugiam-lhe entre os dedos. Era uma mulher de palavra, e ficava sem palavras. A voz perdia-se nos labririntos dos argumentos e emudecia nos becos sem luz das trocas azedas de palavras; palavras gastas à bruta e à pressa, mal nascidas, cuspidas, vomitadas, violadas; a ela, uma mulher de palavra, a voz atraiçoada. Quando cantava abria o peito aos pássaros e esquecia as palavras; esquecidas, as palavras antes esfaqueadas ganhavam força e melodia e voavam aladas nas alturas, mergulhavam na água das nuvens, mexiam o corpo e dançavam; caíam, exaustas, e escorriam languidamente pelo pescoço de Deus, volúpia interdita e apetecida, interrompida por meias palavras, murmúrios, rios silenciosos de asas nocturnas, risadas cristalinas, água espelhada no charco de um olhar minucioso, íntimo, um olhar preciso, atento, irrequieto, pronto a morder. As palavras iam e vinham, nasciam, morriam-lhe na boca, a el

Transpiração

A água ferve. A cabeça voa. O pensamento corre, da faixa azul de azulejos em cima do fogão para a parede branca, e desta para o brilho metálico dos talheres lavados. A água a ferver. A cabeça a latejar. O pensamento a correr pelo chão de mosaicos, a deter-se na linha de luz junto à porta, um bocado de sol a rasgar o chão. O chão líquido no olhar alucinado. A tua voz já não mora aqui. Há muito que o desejo da tua voz lhe ocupou o lugar, na mesa da cozinha, no sofá da sala, no lado direito da cama. O desejo da tua voz é o mais parecido que há com uma dor de ouvidos. A água ferve. O vapor espalha-se no ar tépido. Levanto-me e apago o lume. Tiro uma caneca da prateleira e um pacote de chá da caixa preta, com letras brancas, onde a palavra chá é, de súbito, uma obscenidade. Num relance, vejo-te o corpo nu, a escorrer água, saído do duche. A toalha turca numa intimidade que me arrepia os cabelos da nuca. A tua boca húmida, ligeiramente aberta, a deixar entrever o branco dos dentes. E uma pal

Temperatura

Encontrava-se a um canto da cama, o corpo enrolado, como morto. As costas deixavam de lhe pertencer. Era um caracol, protegido pela concha dura. Nas costas ardia-lhe qualquer coisa húmida. Não sabia o que era. A sensação era semelhante à da mão da mãe, e, ao mesmo tempo, substancialmente diferente. Este toque acordava-lhe qualquer coisa debaixo da pele, como se formigas incandescentes se passeassem pelos seus braços e pernas, detendo-se em turbilhão na barriga, ameaçando explodir. Era por isso que se encolhia e enrolava sobre si mesma: para abafar aquela vertigem no centro do corpo. Paralizava os músculos, tornava-os de pedra, para que nada sentissem. Erguia muro atrás de muro até as costas estarem longe, muito longe de si. Dentro das muralhas ficava quieta, muda, adormecida, igual a uma estátua; e com tanta força cerrava os olhos e os sentidos que chegava a acreditar que não estava ali, que estava trancada dentro da fortaleza de pedra que era o seu corpo e que nada a podia tocar. A co

Por Este Mundo Acima, de Patrícia Reis

Movemo-nos numa noite escura. Os passos frágeis, à flor da escuridão. O ar irrespirável. Sobrevivemos, e não queremos crer nessa possibilidade. À nossa volta, o cenário esmagador da realidade, da destruição extrema. Percebe-se que aconteceu uma catástrofe nuclear a nível global; porém, os pormenores, os detalhes de tal cenário escasseiam. Apenas a geografia familiar completamente esventrada, exposta na sua estranha crueldade, uma crueza esmagadora. A minha leitura é a de que este cenário é apenas isso: um cenário, um pano de fundo, porque esta viagem é essencialmente interna. Os recantos cheios de sombras, a derrocada, os cadáveres dos edifícios, as bocas de esgoto a deitar por fora, o lixo, o cheiros, o arrepio do medo, estão cá dentro, dentro de cada um de nós, dentro de quem sobrevive todos os dias, e nessa busca desesperada volta à dimensão física, animal, da existência. Porque é no corpo e nas suas necessidades que tudo começa e acaba. É o corpo que é real, e, paradoxalmente, só o