Posts

Showing posts from 2013

Baixas pressões

Por aqui, o cinzento desprende-se, vagaroso, das nuvens baixas, e cola-se-nos à alma. Andamos pardacentos, cabisbaixos. Deprimidos. Sabem o que é uma depressão? É um centro de baixas pressões, também conhecido por ciclone. A instabilidade do ar produz a sua elevação, dando origem a nuvens e precipitação. Os ventos ascendentes favorecem a formação de nuvens na vertical, que podem originar fortes chuvadas e aguaceiros. As baixas pressões produzem a instabilidade, a ascensão, a leveza do ar, ao passo que, nas altas pressões, o ar afunda-se, vindo de cima, aquecendo e ficando mais estável, formando uma espécie de tampão que tranquiliza a atmosfera envolvente, como um abraço quente e apertado. A leveza e a ascensão produzem a instabilidade e o mau tempo. Talvez seja por isso que os sonhadores, aqueles que andam sempre nas nuvens, sejam mais vulneráveis às depressões, ao passo que quem tem os dois pés bem assentes na terra não sofra tanto com os desvarios da alma. Será que a nossa cabeça

Que Importa A Fúria Do Mar, de Ana Margarida de Carvalho

Este livro não se devora; e não se devora porque precisa de ser digerido com vagar, com tempo para saborear e ruminar; com tempo para parar e voltar atrás e ler de novo, seja porque a beleza da descrição nos faz querer beber lentamente e ao minuto cada palavra, ou porque a acidez de algumas passagens nos arde na boca do estômago, ou talvez ainda porque as lágrimas nos inundam os olhos de pura comoção e a vista se nos turva. É um livro que não se lê; sente-se. Ouve-se. Cheira-se. Entranha-se. E quando damos por nós estamos lá dentro. No meio do campo, a ouvir os sons da bicharada; aos solavancos no comboio, ao lado de Joaquim, naquela viagem infernal a caminho da incerteza; no olhar entediado de Eugénia, contando as moscas, procurando evadir-se, sem nunca repousar, sempre ausente e perdido entre os seus abismos e o mundo, o passado e as memórias; e depois, finalmente, apaixonado, deslumbrado, amedrontado, extasiado, tudo ao mesmo tempo, que quando dá por ela e já não consegue domar nem

O Relato De Uma Perspectiva Inusitada

15 de Outubro de 2013 10.57 Estamos prontos para mais uma viagem. Quase que conseguimos sentir a comichão nos dedinhos, se ponderarmos que meros acessórios de calçado podem sentir o que quer que seja. Não se iludam, é verdade: ainda que inanimados, sentimos tudo. E aquela sensação nos dedos de quem se prepara para dar no pedal durante a próxima meia hora é inequívoca. 10.59 Espera, algo aconteceu. Ela está de telefone na mão a olhar para o ecrã com ar interrogativo. Os pés sabem-no, e nós, já se sabe, somos uma caixa de ressonância destes apêndices corporais. Os órgãos principais do corpo humano. Qual coração qual carapuça! Não passa de um músculo, uma bomba em permanente rotina, limitando-se a engolir sangue e a cuspi-lo de volta à grande e pequena circulação; como pode saber de alguma coisa se nada retém, mero orgão de passagem, toma lá dá cá e toma lá outra vez, um operário numa linha de montagem que, em vez de montar, apenas passa as peças de um lado para o outro? O cé

Retrato em branco e preto

Essa fotografia morava numa prateleira alta de um armário em casa dos meus avós. Nessa altura todas as prateleiras eram altas. Eu pedia para vê-la e a minha avó fazia-me sempre a vontade. Tirava-a da estante e, sentando-me no colo, ajudava-me a encontrar a embrulhadinha. A embrulhadinha era uma menina, assim da minha idade, acho até que com a mesma cara (pelo menos o cabelo era igual), que espreitava do meio da pequena multidão que me olhava da fotografia. Tinha uma manta ou um cobertor a envolvê-la, e por isso estava embrulhada, aconchegada, tapadinha, como se dormisse, mas em pé. Daí o nome, embrulhadinha. Era uma excitação procurá-la no meio de todas aquelas caras de gente crescida, olhos negros e bocas murchas, tezes cinzentas e cabelos, barbas e bigodes escurecidos pelo preto e branco. Cada figurinha tinha o tamanho da ponta do meu dedo mindinho, e havia tantas, lado a lado, em carreirinhas, que encontrar fosse quem fosse já era uma proeza. Ainda hoje não sei quem eram aquelas pes