Os Comeres dos Ganhões

Da Páscoa da minha infância, o que retenho é o traseiro de um senhor chamado Vadis. O Aníbal gostava da piada: é hora de ver o Quo Vadis! E todos os anos a cena se repetia.
O meu primo Aníbal era ateu e comunista convicto. A livraria que fundou em Estremoz e onde distribuía livros proibidos pela censura retém o seu nome até hoje. Era também um excelente cozinheiro. Arrisco dizer que em sua casa se comia melhor do que nos mais bem cotados restaurantes da região. A Cozinha dos Ganhões, que continua a integrar a FIAPE, em Estremoz, foi ideia sua e de outros seus compadres.
Os Comeres dos Ganhões, editado em 1994 pela Campo das Letras, é uma colectânea de receitas típicas muito original: antes de cada receita são reunidos testemunhos sobre a forma como aquele prato (não) era comido nos tempos em que a fome e a miséria grassavam no Alentejo.
São histórias de pasmar: o trabalho de sol a sol, ou ver a ver, durava enquanto houvesse luz. A açorda pelada, assim designada porque quando caía nas calças não deixava nódoa. As azeitonas sapateiras, mergulhadas numa água escura que cheirava à água onde os sapateiros punham as solas de molho. Uma sardinha repartida por três: o rabo para um, a barriga para outro, e uma briga porque ninguém queria a cabeça.
Batermo-nos pela divulgação e reedição de livros portadores de memórias colectivas, pilares da nossa identidade que é imperativo preservar é mais eficaz, creio, do que clamar a fogueira para aqueles a que não devíamos dar a mínima importância.

(texto publicado na Revista Sábado a 11 de Março de 2016 com o título "A Caminho do Alentejo...")

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