Apaixonei-me por um livro

23 de Março de 2009
O meu livro muito amado: corpo delicado, mãos pequenas, unhas roídas, olhar doce e cabelos fartos, negros, que lhe caem em cachos até ao pescoço. Eu vivia para aquele livro: esperava pelas idas ao teatro como se apenas ali, naquele espaço mágico, me fosse possível respirar. Naquela altura desconhecia que a rapariga que eu amava era um livro, assim como todas as pessoas que eu conhecia. Só o soube depois de morto. Que fosse preciso morrer para me aperceber de uma coisa tão óbvia é espantoso. Serão os vivos todos cegos como eu era?

As pessoas são livros porque têm muitas páginas. Quando olhamos alguém vemos apenas a página de rosto, tal como quando olhamos um livro. Ao abri-lo, outras páginas se revelam; porém, só uma de cada vez: há sempre aquelas que permanecem ocultas. O mesmo se passa com as pessoas.

Os livros que amamos, aqueles que nos conquistam, são os que lemos até ao fim, vencidos; os mesmos que, chegados à última página, não queremos que terminem e continuamos, em delírio, a folheá-los, numa teimosia que nos transforma, de súbito, em escritores-fantasma.

Os livros, tal como as pessoas, não podem ser abertos de qualquer maneira. Manusear um livro exige delicadeza. As pessoas recuam se as lermos sem o mínimo de cuidado. Antes de abrir um livro, o toque é essencial. A capa, a lombada, a folha e só depois o toque da palavra. 

7 de Agosto de 2001
Antes de eu morrer, morava em Fajã da Ovelha com os meus avós maternos. Isto depois do acidente de viação que vitimou os meus pais, tinha eu apenas cinco anos. O meu avô paterno, que já nessa altura era viúvo, queria que eu fosse viver com ele para o Funchal e tentou convencer o meu avô materno, usando argumentos que visavam a minha educação e as oportunidades que uma vida citadina, segundo ele, ofereciam; este, no entanto, não se deixou levar na conversa, frisando que em Fajã da Ovelha também havia escola; além disso, dizia ele, apoiado pela minha avó, uma criança precisa, acima de tudo, de uma mãe e, na falta desta, uma avó desempenha melhor do que ninguém esse papel.

Assim foi. Eu vivia com os pais da minha mãe numa rua inclinada, onde os carros não chegavam e aos sábados o meu avô, pai do meu pai, estacionava o Ford Mondeo ao pé da Igreja e vinha buscar-me. A Igreja era branca e desaparecia nos dias de nevoeiro. Uma vez no Funchal, almoçávamos sempre no mesmo restaurante, íamos ao teatro e dávamos umas voltas pelo porto e a marina se estava bom tempo. Eu gostava de ouvir o grito dos cruzeiros que abandonavam o porto. As prateleiras da casa do meu avô estavam repletas de livros. Todos os sábados ele me dava um, acrescentando que os livros, tal como os cruzeiros, podiam levar-me a ver o mundo.

20 de Fevereiro de 2010
Naquele sábado a enxurrada apanhou-nos na estrada. Foi tão rápido que não me recordo. Estava sentado no lugar do morto, ao lado do meu avô e olhava a chuva que caía em cascata no vidro enquanto os limpa-pára brisas, no máximo, executavam a sua dança mecânica. No segundo a seguir já não estava ali. Uma árvore caída, arrastada na fúria das águas, embateu no carro. Fomos varridos ribanceira abaixo até ao mar.

O lamaçal invadiu o Teatro Municipal Baltazar Dias, o mesmo onde tantas vezes assistíramos a espectáculos e concertos de música. Era uma imagem desoladora. Eu e o meu avô pairámos por ali dia e noite, completamente desconsolados. Aquela passou a ser a nossa morada. Os mortos vivem nos sítios onde foram felizes.

17 de Junho de 2008
Foi neste teatro que conheci o livro por quem me apaixonei. Ela vinha com a mãe e a irmã e sentavam-se no camarote ao lado da nosso. Durante o espectáculo, eu imaginava os olhos dela pousados nas mesmas coisas que os meus e isso era o mais parecido com uma carícia a que me atrevia. O mesmo acontecia à noite quando, ao mirar a lua, acreditava que ela a olhava também, naquele preciso instante e só isso era suficiente para me sentir imensamente feliz.

8 de Abril de 2009
Às vezes penso que comecei a amá-la quando a vi chorar numa peça de teatro mais dramática. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto e toda ela era um silêncio profundo. Desconfio de que ninguém deu por aquelas lágrimas e eu só fui testemunha porque estava mais interessado em observá-la pelo canto do olho do que na cena que se desenrolava no palco. De outras vezes creio que o meu coração ficou cativo numa noite em que veio uma pianista famosa dar um concerto. Não me lembro do nome da pianista mas sim da música que lhe voava dos dedos e do modo como, arrebatado, levitei pela sala. A sensação era quase a mesma de agora, depois de morto.

As luzes no palco completam a magia: notas de um piano, voz, uma silhueta, cabelos incendiados, rosto oculto e desvendado no jogo de sombras e contraluz; a voz que respira em nós; o som da guitarra, do acordeão; um rio de sons e a beleza de um perfil, de uma boca; a beleza nua do mundo; a beleza de uma tragédia sem o peso da tragédia; o peso da leveza, o peso da ternura. 

13 de Janeiro de 2016
O meu coração, apesar de parado há seis anos, continua a sobressaltar-se de cada vez que ela vem ao teatro. Na minha condição já não preciso de abrir os livros para os ler. Sei que moro nas suas páginas juntamente com a dor da minha ausência. Sofre de saudade crónica. O que lhe custa mais, eu sei, é não me ter visto uma última vez. Como dizer-lhe que não devemos nunca despedir-nos de um grande amor ou de uma paixão do tamanho da própria vida? O que teria sido de mim se soubesse que ia morrer naquele segundo exacto, ainda que um escasso segundo antes?

11 de Abril de 2016
De há uns tempos para cá os escritores vêm ao teatro todos os anos. Vêm também jornalistas entrevistar os escritores. Falam de literatura e de arte. Vão às escolas, levam livros às nossas crianças, lêem-lhes histórias. Ela, o meu livro mais amado, está cá sempre, com a mãe e a irmã, a assistir ao festival literário. No camarote que eu e o meu avô ocupávamos senta-se agora um outro rapaz com o pai.

Vi-lhes nascer o amor em pequenos gestos. Vi-o crescer. Vi-os abandonar os camarotes e sentarem-se lado a lado na plateia. Vi-os conversar, rir, perder o olhar um no outro como só os apaixonados são capazes. Vi-os escutar as conversas dos escritores de mãos dadas, ouvir música de olhos fechados e cantar na escuridão dos concertos como se gritassem o nome um do outro em surdina. Os mortos, felizmente, não sentem ciúmes.


16 de Abril de 2016
Os escritores trazem palavras e vida a este teatro. Saberão o quanto iluminam as ruas? São uma espécie de família empenhada em expandir a sua fé no poder da literatura. Os escritores acreditam que os livros nos salvam. Desconhecem, contudo, que as pessoas são livros; ou melhor, sabem-no melhor do que ninguém mas pensam que tal ideia é uma metáfora. Estão convencidos, aliás, de que a vida é uma alegoria. E que lhes cabe a si descodificar o mundo e como tal fazem um esforço considerável para tornar as suas palavras, a sua linguagem muito própria, inteligível para o comum dos mortais. As pessoas, porém, são livros, todas elas; e não no sentido metafórico. Cada uma com uma linguagem única. A diferença entre elas e os escritores é que os últimos insistem em traduzir a multiplicidade de páginas que trazem dentro, sofrem de uma compulsão comunicativa, as suas palavras precisam de encontrar outras e definham se não vêem a própria luz disseminada pela humanidade inteira, ainda que seja no silêncio que melhor se escutam e ganham sentido. Já as primeiras, guardam para si as suas histórias e contentam-se com a reclusão que o anonimato acarreta: são os diários esquecidos dentro de gavetas ou os livros que nunca se escrevem por receio ou pudor.


Depois de seis dias a ouvir escritores discorrer sobre falsidade e verdade na literatura e no cinema, sobre direitos humanos, alteridade, religião, biografia e muito mais, estou capaz de escrever um livro. Os defuntos perdem as páginas assim como as árvores perdem as folhas. A morte é o inverno da existência. Eu, todavia, revolto-me contra a morte, não me resigno à ideia de nunca mais poder tocar o meu livro amado. Conhecer-lhe as páginas de cor não basta. O amor exige o bater do coração que já não me mora no peito. Por isso reescrevo a minha história: para que venha a primavera e com ela, novas páginas onde possa reinventar-me e, quem sabe, partir finalmente num desses cruzeiros que deixam para trás um ronco surdo pairando nas nuvens.

(texto publicado na rubrica Diário do Jornal de Letras de 8 a 21 de Junho de 2016)

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