Que Importa A Fúria Do Mar, de Ana Margarida de Carvalho

Este livro não se devora; e não se devora porque precisa de ser digerido com vagar, com tempo para saborear e ruminar; com tempo para parar e voltar atrás e ler de novo, seja porque a beleza da descrição nos faz querer beber lentamente e ao minuto cada palavra, ou porque a acidez de algumas passagens nos arde na boca do estômago, ou talvez ainda porque as lágrimas nos inundam os olhos de pura comoção e a vista se nos turva. É um livro que não se lê; sente-se. Ouve-se. Cheira-se. Entranha-se. E quando damos por nós estamos lá dentro. No meio do campo, a ouvir os sons da bicharada; aos solavancos no comboio, ao lado de Joaquim, naquela viagem infernal a caminho da incerteza; no olhar entediado de Eugénia, contando as moscas, procurando evadir-se, sem nunca repousar, sempre ausente e perdido entre os seus abismos e o mundo, o passado e as memórias; e depois, finalmente, apaixonado, deslumbrado, amedrontado, extasiado, tudo ao mesmo tempo, que quando dá por ela e já não consegue domar nem dominar os sentimentos que lhe brotam ao desbarato dos poros. Na frigideira no Tarrafal, em morte lenta, abafada, asfixiada; no mar lodoso de algas moribundas até à cintura, e no alívio das feridas ardendo na água salgada; na fúria do mar que amaldiçoa quem o ousa abandonar com o cheiro putrefacto das coisas mortas. Este livro tem vida e apodera-se de nós e quando damos por isso já não há nada a fazer, recusamos acordar do sonho e ficamos parados naquele segundo eterno em que os olhos se perdem no azul do mar, lá ao fundo, ao virar da última página; e é na nossa cara que o vento bate de chofre, no embalo da corrida até à última palavra, mar, numa promessa de eternidade.

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