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Showing posts from 2020

Nada na manga

Lembro-me de a minha avó andar com um lenço dentro da manga para se assoar. Nunca me perguntei do motivo para tal. Durante a infância, e boa parte da vida adulta, estes detalhes da vida dos mais velhos não nos causam qualquer inquietação. Olhamos os velhos como se pertencessem a uma espécie diferente: a gente sabe que um dia a metamorfose acontecerá, mas por enquanto ainda estamos do lado de cá. Ao aproximarmo-nos do meio século de existência, caímos na real: não existe transformação nenhuma, nem fronteira; apenas o tempo que traz fraqueza e maleitas ao corpo. Hoje em dia tenho de me assoar constantemente. Não é por andar sempre constipada, é porque o pingo no nariz tornou-se numa constante, capaz de irritar até a mais pacífica das criaturas. É aquele pingo discreto, suave, quase gentil, mas que, não obstante, está sujeito à força da gravidade e, por isso, nos obriga a gastar quantidades de lenços pouco recomendáveis à saúde do planeta. Já pensei várias vezes na praticalidade de andar

Um poema da Pandemia

Isto ou Aquilo Há pouco Na varanda Ouvi o vizinho do lado Não sei onde isto vai parar Não percebi do que falava  Mas lembrei-me da minha mãe  Ontem  Na cozinha Para o meu pai Isto vai de mal a pior Há um senhor na televisão  Que está sempre a dizer Isto é uma vergonha! Assim, com ponto de exclamação  Então resolvi ir ao dicionário  Mas fiquei na mesma O que é um pronominal demonstrativo? Perguntei à minha irmã  Não me chateies Foi a resposta  Eu insisti O que é isto de que toda a gente fala Que é uma vergonha E vai de mal a pior E ninguém sabe onde vai parar? Deve ser a tua língua, puto A minha irmã é uma chata  Está sempre a desconversar  Voltei para a varanda O vizinho continuava ao telefone Ou talvez falasse sozinho Anotei todas as vezes que ele disse a palavra  Isto não pode ser Isto não se aguenta Isto ainda é pior do que eu pensava  Isto é ridículo  Isto é uma merda Isto é demais! Isto é uma coisa Isto não se pode Isto só visto  Porque contado ninguém acredita  Isto é com cada um

A Cabana do Tio Tom

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A Cabana do Tio Tom, o famoso livro de Harriet Beecher Stowe, foi publicado pela primeira vez na íntegra pela Sibila Publicações, e a mim coube-me a honra da sua tradução. Um exercício tremendo, já que foi o meu primeiro trabalho nesta área. O livro já está em pré-venda. Disponível a partir de 15 de Outubro: https://loja.sibila.pt/A-Cabana-do-Tio-Tom-Harriet-Beecher-Stowe A Cabana do Tio Tom , de Harriet Beecher Stowe. Tradução de Gabriela Ruivo Trindade. Introdução de Inocência Mata. Nº páginas: 512 pp. ISBN: 978-989-54367-8-1. Dimensões: 153 x 232 x 33 mm «Então a senhora é a pequena mulher que escreveu o livro que deu início a esta grande guerra!»  — Em 1862, Lincoln encontra-se com Harriet Beecher Stowe na Casa Branca. A segunda obra de ficção mais influente do mundo. — BBC Culture O livro que desencadeou a Guerra da Secessão. Este poderoso e panorâmico romance, um dos livros mais populares, influentes e controversos da História da Literatura, que se publica na sua versão original

Distância de Insegurança - Diário da Pandemia

7 de Abril 2020  Os escritores dividem-se em dois grupos: os que trabalham noutra actividade e meia-dúzia de afortunados que se podem dedicar inteiramente à escrita. Estes últimos, geralmente, passam a vida fechados em casa; os mais sortudos a escrever, e os outros, que na maioria dos casos são outras, a fazer malabarismos domésticos para conseguir escrever. Atenção que estou a falar na generalidade. Sei que há muitos homens que se dedicam às tarefas domésticas. Põem o lixo lá fora, por exemplo. E depois fica o caixote sem saco do lixo. Ou a roupa na máquina, mas encontrar o programa requer toda uma técnica que lhes deixa os neurónios à beira de um colapso. Também tiram a louça da máquina, e depois andamos à procura da tampa da panela e encontramo-la na gaveta dos panos e das pegas. E cozinham, claro, mas só se não tiverem de picar cebola. É que devem ter as glândulas lacrimais mais sensíveis, não sei. Ou então acham que um deve homem chorar, sim senhor, mas nunca por causa de uma cebo

Distância de Insegurança - Diário da Pandemia

6 de Abril 2020  Não pretendo que isto se torne um diário. Não sei que nome dar a isto. São apenas coisas que me passam pela cabeça. Pensamentos velozes. O mundo está parado e o pensamento é a única coisa que corre, para além dos rios. Ou será o contrário? Vemo-nos estagnados, em casa; o corpo insiste em sair e correr para manter a ilusão de movimento, mas no fundo de si tudo está parado, o olhar fixo num ponto lá muito ao fundo, tentando vislumbrar uma réstia de esperança; permanecemos imóveis e o mundo vertiginoso na sua corrida louca em redor do astro rei; os corpos caem no campo de batalha mas não estamos lá para ver, só o silêncio, e a ausência rapidamente se confunde com indiferença, fica o coração confundido; devemos chorar, espremer a angústia até ao tutano, ou dar graças por não ser connosco? Os pensamentos sucedem-se em linha recta e às curvas. No outro dia, os miúdos falavam entre eles, um dizia que os pensamentos ficam destituídos de moralidade se não se concretizarem num

Capitolina Revista - Uma publicação dedicada à literatura em língua portuguesa

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A Capitolina Revista é uma publicação inteiramente dedicada à literatura em língua portuguesa com edição de Nara Vidal, autora brasileira distinguida com o Prémio Oceanos para o romance Sorte. Nela colaboram Silvia Gasparoni, responsável pela Lusoteca na revista online LuciaLibri, e que faz toda a paginação e design gráfico em PDF, Carla Bessa, escritora, tradutora e resenhista, que escreve resenhas literárias, e Gabriela Ruivo Trindade, moi-même , com a rubrica As Personagens da minha Vida, em que escritores nos apresentam personagens literárias que os marcaram, e matérias várias. Revista:  https://www.capitolinabooks.com/revista-oblique Artigo da Silvia Gasparoni na revista LuciaBibri sobre a Capitolina (de onde foi retirada a composição fotográfica): https://www.lucialibri.it/2020/07/23/capitolina-vitalita-lusofona/

Distância de Insegurança - Diário da Pandemia

5 de Abril 2020  Hoje o sol brilha e está calor. Calor. O Tesco tem fila à porta mas no parque de estacionamento, não. As toalhitas para limpar o varão do carrinho das compras esgotaram, parece, porque no seu lugar está um vaporizador e uns panos descartáveis. Será que não percebem que é a mesma coisa? Em vez de as pessoas apanharem o vírus no varão, vão apanhá-lo no frasco do vaporizador, a não ser que usem luvas. As medidas de segurança a relaxarem. Não estamos ao nível de um Brasil, e talvez nem de uns Estados Unidos, mas estamos muito longe de uma Alemanha, ou França, ou Portugal. O meu país a ser modelo de eficiência na contenção do vírus. Nós, aqui, ainda estamos meio a dormir. Talvez porque o sol brilhe e as pessoas se recusem a acreditar. A mim também me custa. Os miúdos estão em casa, e essa é a parte anormal. Estão em casa o tempo todo. É bom, claro, por enquanto, que ainda não nos fartámos uns dos outros. É preciso impor de novo uma disciplina há muito esquecida, porque co

Distância de Insegurança - Diário da Pandemia

4 de Abril 2020  O sol continua lá. As árvores, os pássaros. Tudo no mesmo sítio. Ainda olhamos o céu em busca de sinais. E evitamos os abismos da alma por os sabermos sem fundo. Onde podemos enterrar o medo, se nem carregá-lo nas mãos? Vivemos um dia a seguir ao outro. Continuamos a trabalhar, a lavar a cara de manhã. Há vozes que nos chegam e preferimos ignorar. De longe. Precisamos de nos concentrar no ruído. O silêncio traz pressentimentos fúnebres. Os cortejos de camiões militares carregando corpos. Como poderemos ser os mesmos depois disto? E agora, aqui? Nada mudou à nossa volta, as nuvens continuam a pairar. Chove. Sentimos frio. Ainda respiramos. Transplantamos a vida para dentro de quatro paredes, como se fosse possível. Dizemos às crianças que está tudo bem. Que vai ficar tudo bem. Dizemos a nós mesmos. Voltamos à infância, ao reino do absurdo, onde todos podemos ser reis, e princesas. Cremos ingenuamente naquilo que repetimos constantemente, em surdina, como uma prece. Sem

Distância de Insegurança - Diário da Pandemia

30 de Março 2020  Ela seguia o pasmo, a incredulidade dos amigos e conhecidos durante a quarentena. Todos eles estrangeiros nesta terra de ninguém. Pelo menos assim parecia. Todos, menos ela. Já conhecia aquelas paragens há muito. Desde que se conhecia por gente. Sempre vivera em quarentena. Nada era novo. A sensação de perigo iminente, sempre a antecipar cenários catastróficos, desgraças, calamidades. Vivia-lhe no sangue. Era talvez a força que bombeava o coração, o medo. Um companheiro para a vida. O desastre acontecera há muito. Tanto, que não se recordava ao certo. Um naufrágio, um maremoto, uma enxurrada, um aluviamento de terras. Ficara só no mundo. A única sobrevivente. Ninguém testemunhara o seu desespero. Ninguém aliviara as suas feridas. Ninguém a consolara. Ninguém. E quando não há testemunhas, a realidade escapa-se-nos, os sentidos traem-nos. Se ninguém estava lá para ver, será que aconteceu mesmo? Terá sido imaginação? Se pudéssemos fechar os olhos e acordar deste pesa

III Antologia de Poetas Lusófonos na Diáspora

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Uma publicação Oxalá Editora. Autores:  Sarah Virgi. Paula De Lemos. António Barbosa Topa. Gabriela Ruivo Trindade. António Magalhães. Dominique Stoenesco. Irene Marques. Maria Beatriz Ferreira. Maria do Rosário Loures.  Artur Fernandes. Neusa Sobrinho Amtsfeld. Isaac Nin. Ana Casanova. António da Cunha Duarte Justo. Fernando Viriato Matos. José Luís Correia. Pedro Monterroso. São Gonçalves. Naria Radatos. Rosana B. L. Bouleh. Ana Carla Gomes Fedtke. Marília Andreä . Vitor Gonçalves. Tonito Espanhol. Eberhard Fedtke. https://www.oxalaeditora.com/livros/poetas-lus%C3%B3fonos-iii-antologias/

Correr Mundo - Dez Mulheres, Dez Histórias de Emigração

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Colectânea de contos Correr Mundo - Dez Mulheres, Dez Histórias de Emigração, publicada pela Oxalá Editora. Autoras:  Irene Marques,  Toronto (Prémio literário Imprensa Nacional/Ferreira de Castro 2019)  , Paula De  Lemos , Trier, Luísa Costa Hölzl,  Munique, Luísa Semedo, Paris)  Gabriela Ruivo Trindade, Londres (Prémio Leya 2013), Maria João Dodman, Toronto, São Gonçalves, Luxemburgo, Luz Marina Kratt ,Bodensee, Helena Araújo, Berlim, Altina Ribeiro, Paris. https://www.oxalaeditora.com/livros/correr-mundo/