Café do Cristiano

Boas tardes. Entre, menina, entre. Sim, viu logo pelo nome, não foi? O quê? Passa aqui todos os dias e nunca tinha visto este café? Deve andar distraída, que a gente já aqui está vai para cinco anos. É verdade: está aqui a minha patroa que não me deixa mentir. Então e o que vai ser? Um cafezinho? Uma meia de leite? Um bolinho? É o que está à vista: pastéis de nata, mil folhas, bolinhos de arroz, queijadas, travesseiros de Sintra... Olhe que são dos verdadeiros: trabalhei uns anos na fábrica das queijadas, em Sintra, a menina conhece? Foi lá que aprendi a receita. Também temos aqui umas broas de Natal e umas filhoses, estas foi a minha patroa que fez. Ora então é uma ucal e um pastel de nata? Sente-se, menina, sente-se que eu levo já. Aí na mesa do Cristiano Ronaldo; está a vê-lo aí na parede? Pois, ali também, e aqui nesta parede tenho mais três. É o café do Cristiano, pois, foi por causa do nome que viu que era português, não foi? Ah, mas não associou ao Cristiano Ronaldo? Então, mas que outro Cristiano é que havia de ser? Cristiano só há um, o Ronaldo e mais nenhum! Ah! Ah! Ah! Aquilo é um moço de ouro, menina. Madeirense como eu. Mas no meu tempo era uma desgraça, nunca ia sair dali outro como ele. Então veja lá, eu nasci no meio aqueles montes a perder de vista, aqueles vales por ali abaixo; a menina já foi à Madeira? Não? Tem que lá ir, para perceber o que lhe digo. Olhe que em miúdo nunca vi o mar, a menina acredita numa coisa destas? Já era quase homem feito quando fui ao Funchal a primeira vez. Naquele tempo não havia cá transportes nenhuns, a gente vivia numa miséria que só visto, contado já ninguém acredita. Aqui está, o leitinho e o pastel de nata. Deseja mais alguma coisa?

Diga? Um copinho de água? É para já. Está bem aí? Veja lá se quer vir aqui para junto do balcão, aí está muito perto da porta, e faz muita corrente de ar, mesmo com ela fechada. Foi o meu marido que lhe disse que se sentasse aí na mesa do Ronaldo, não foi? A menina não ligue, que ele tem esta cegueira com o Ronaldo, até parece que é um filho. Sabe que a gente perdeu um filho, e também se chamava Cristiano, nascido no mesmo ano e tudo. Já foi assim depois do tempo, sabe, que nessa altura já tinha dois filhos criados; desconfio até que foi por isso que não vingou. Foi, foi muito duro, a menina nem imagina. E depois olhe, quando o Ronaldo começou a ficar famoso, o meu marido foi o que se viu, parecia que era o nosso Cristiano. Já reparou nas fotografias, não é? Mas há mais: olhe ali atrás do balcão, está a ver aquelas canecas com a cara dele? E os cinzeiros, já viu os cinzeiros? E a árvore de Natal? No lugar da estrela está o Ronaldo. Até no presépio, o menino Jesus é um recorte de uma fotografia dele, que vinha numa revista. Coisas do meu marido.

O que é que a menina tanto escreve? Desculpe lá a pergunta, mas fiquei curioso. Sabe que fiquei aqui a pensar, a sua cara não me é estranha. Já a vi em qualquer lado. A menina é jornalista? É que agora passou-me pela cabeça, querem ver que está a escrever assim para um jornal? Se calhar até sobre o Ronaldo, pois, então a menina não sabe que ele vai ser Cavaleiro da Ordem do Infante, ou lá o que é? Diz lá, Maria? Ah pois, não é Cavaleiro, é Oficial, Grande-Oficial, pois, é isso, é. Aquele moço é o meu orgulho. Ai não é sobre isso que está a escrever? Mas o que é que tem assim tanto para escrever, a menina?

Não ligue ao meu marido que ele é mesmo assim, mete-se com toda a gente, faz perguntas, perguntas, aquilo é uma máquina de fazer perguntas. E sabe que o sonho dele é um dia aparecer na televisão ao lado do Cristiano Ronaldo. Meteu isto na cabeça. Ali atrás do balcão, em chegando à cozinha, há assim um recanto onde ele fez uma coisa que parece um altar. Com umas imagens do Cristiano, e umas velas, e tem sempre lá flores. Até pôs assim uma almofada no chão para se ajoelhar. Diz que conversa com ele. Eh! Eh! Eh! Pois, eu até me rio, mas tem de ser assim sem que ele perceba, que isto para ele é um assunto muito sério. Então o sonho dele é que as pessoas vejam a devoção que ele tem ao Ronaldo. Desconfio é que ele gostava que isto chegasse aos ouvidos dele, do moço, pois, e que ele viesse cá. Isso é que ia ser! Acho que o meu marido morria de comoção! Foi por isso que meteu na cabeça que é jornalista, pois. Isto ele não diz nada mas eu conheço-lhe os pensamentos. É muito ano juntos, menina. É o que é.

Eu já a vi, sim, e foi há pouco tempo. Não apareceu na televisão?

Ó Zé, deixa lá a menina, mais as tuas perguntas!

Pronto, peço desculpa. Isto são coisas de velho, a menina não ligue. Mas pode escrever o que lhe digo: não há outro café igual aqui ao do Cristiano. Este moço é o orgulho da nação. Os portugueses ficam deslumbrados mal cruzam a porta e vêem as fotografias dele. Eu bem vejo a maneira como sorriem e apontam. E quando há jogo então, a menina nem sonha! É uma festa, a menina tem que cá vir um dia ver os jogos da selecção. É como se estivéssemos todos em casa. Já reparou que os portugueses reunem-se todos neste e noutros cafés? Parece que nos farejam à distância. Quando aqui entram é como se viajassem até Portugal. É ou não é? Não é por isso que a menina cá vem? Para beber a sua ucalzita, comer o seu pastelinho de nata, matar saudades de falar português? Há bocado quando entrou vi logo que era portuguesa, foi por isso que dei as boas tardes sem peguntar nada. Ora, então, pelo seu sorriso! Eu reparo em tudo. Foram os seus modos, assim à vontade, como se estivesse a abrir a porta de casa. Aquele brilho nos olhos de quem vai dizer, olá, bom dia! Não há nada que se compare a isso, pois não?  Já vi muito, sabe, já andei por esse mundo fora. Aos vinte e dois anos embarquei num navio que aportou no Funchal e desde aí nunca mais parei. Olhe, já vivi em Portugal, na Bélgica, na Itália, na Alemanha, até no Brasil, vivi lá quatro anos, mas isso foi antes de casar. Isto sem contar com os sítios onde só fui de passagem. Tenho visto muita coisa, menina. Por isso lhe digo que tem cara de jornalista, dessas que aparecem na televisão. E digo mais: pode escrever tudo o que lhe contei. Tome nota, não se esqueça de nada. E depois publique numa revista, num jornal, onde quiser. Pode ser que assim chegue aos olhos do nosso Cristiano e ele resolva fazer-nos uma visita. Já imaginou, o Cristiano Ronaldo a entrar por aquela porta? Olhe que ia ser o dia mais feliz da minha vida. Por isso escreva, menina. Escreva.

(este texto foi publicado, numa versão reduzida, na revista Sábado de 16 de Janeiro de 2014)

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