A perda de humanidade

Ontem assisti à conversa aberta que a Amnistia Internacional organizou sobre a situação dos jovens presos políticos em Angola (vídeo abaixo). E só me ocorre dizer: é incrível como a história se repete. É incrível como a cegueira é sempre a mesma.

 No debate intervieram alguns jovens angolanos, que estudam ou trabalham em Portugal, cujo discurso revelou, com alguma variedade, mais ou menos a mesma linha de pensamento: Angola é um país independente, não se deve interferir com os seus assuntos internos, isso é paternalismo e restos de colonialismo encapotado; deixem a justiça trabalhar, respeitem as diferenças culturais (que foram apontadas como desculpa para claras condições desumanas de atendimento ao público em alguns hospitais); e finalmente, quem somos nós (e a resto da comunidade internacional) para apontar o dedo a Angola, quando existem violações dos direitos humanos e corrupção à escala mundial.

 O que mais me impressionou no discurso destes jovens foi o facto de, nem por um segundo, transparecer das suas palavras o mínimo resquício de solidariedade, preocupação ou cuidado para com outros jovens que estão presos há meses, em condições precárias, sofrendo maus tratos e alguns em situações de degradação da sua saúde física e mental, sem que lhes sejam dispensados os cuidados necessários. Não houve uma única palavra, um único gesto, que denunciasse qualquer empatia e preocupação genuína pelo estado desses jovens.

 Particularmente comovente foi a intervenção da mulher de Luaty Beirão, um dos jovens detidos. Ela, que, como disse, não concorda com a forma de pensar do marido, em termos de actuação em relação às condições vividas em Angola, acabou por acordar para a realidade quando cerca de 50 agentes de segurança lhe entraram porta adentro apenas por ser mulher do detido e, para além do abuso de autoridade que representou a brutalidade com que a invasão à sua privacidade foi levada a cabo, viu confiscado todo o seu material de trabalho (material fotográfico) sem qualquer justificação. Como ela muito bem referiu, isto pode acontecer a qualquer pessoa. Às vezes podemos ser levados a pensar que não há fumo sem fogo; que se os jovens foram presos alguma razão houve para isso. Mas isso só denuncia a cegueira colectiva: aqueles jovens foram presos porque estavam a exercer um direito consagrado na constituição, que é o de se reunirem e organizarem uma manifestação. São presos políticos. A sua detenção é ilegal.

 Infelizmente, para muitos de nós, só quando sentimos na pele é que acordamos para a realidade. Vivemos nas nossas bolhas sem fazer ideia do que se passa à nossa volta, na casa do vizinho, no guetto ao fundo da rua, num país distante. Não fazemos a mais pequena ideia e nem fazemos questão disso. Assistimos à vaga de refugiados da devastação da guerra e o que vimos são oportunistas, até têm telemóveis e milhares de euros para pagar as travessias de barco, o que eles querem é vir para a Europa roubar o que é nosso. Ou terroristas. Seja o que for. Tudo vale, desde que não sejamos obrigados a olhar nos olhos dos outros e descobri-los seres humanos como nós.

Os jovens angolanos a viver em Portugal nas suas bolhas de conforto são disso um bom exemplo. Arranjam mil e uma justificações intelectuais para não terem de olhar os olhos dos jovens seus irmãos, presos por contestação ao regime. É que o risco de se colocarem no lugar deles é, quem sabe, demasiado assustador. A capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, a empatia, é, no entanto, aquilo que nos define como seres-humanos. Valores como a solidariedade, o respeito mútuo, o direito à dignidade, a fraternidade entre os povos, assentam na nossa capacidade empática. Quando recusamos colocar-nos no lugar do outro estamos a diminuir-nos como seres humanos. Quem perde somos nós.

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