"Mexeu com uma, mexeu com todas"

O caso de assédio da Globo retrata bem, mas tão bem as dinâmicas em jogo em casos de assédio que parece ter acontecido para nos dar uma lição.
"Não, o cara não representa ameaça."
"É alguém que a gente conhece."
"Não fez por mal, foi uma brincadeira."
etc, etc, etc
Frases típicas saídas da boca de homens (e também de algumas mulheres). Pessoas que se solidarizam com o agressor porque o conhecem, é boa pessoa, e acham que este não seria capaz de fazer realmente mal a alguém.
Pois esse é o problema. A nossa incapacidade de reconhecer que as boas pessoas (aqueles que a gente considera como tal) são capazes de actos condenáveis. Todos nós, aliás.
As frases acima também demonstram a tentativa de minimizar esses actos. Afinal, uns piropos, que mal tem? Se não gostas de ouvir, ignora! Pôs a mão na perna, no braço, no peito, na vagina? Ah, releva! Não deixou marca, pois não?
Pois que fique bem claro: deixou, sim. Deixa marca sempre. TUDO: os olhares, os piropos, as mãos e outras partes do corpo, deixam sempre marca. Na alma, que é onde a marca fica para sempre (as do corpo geralmente desaparecem com o tempo).
Eu tendo a achar que homens e mulheres não diferem tanto assim: em inteligência, em sensibilidade, em capacidade de discernimento. Mas há uma categoria em que divergimos, sim, e esta é a experiência de vida. A socialização. No caso concreto do assédio, a exposição ao mesmo é largamente um problema das mulheres. É claro que também há mulheres que assediam homens, mas o assédio está claramente associado a uma relação de poder e, convenhamos, o número de mulheres em cargos de poder é muito menor do que o de homens. Por isso, se reuníssemos cem homens numa sala, acredito que alguns deles tivessem passado pela experiência de terem sido assediados (por mulheres ou por homens). Mas se reunirmos cem mulheres numa sala, sabe quantas terão histórias de assédio para contar? Quantas? Eu arrisco dizer que, com toda a certeza, as cem terão.
E começa muito cedo: há aquelas que o são em casa, às mãos de pais, ou irmãos mais velhos, ou tios, ou avôs (atenção que também podem ser as mães, irmãs mais velhas, tias, avós. Há casos de mulheres agressoras, mas os números são muito menores). Para essas,  começa cedo de mais. Para as outras, assim que o corpo toma formas, por volta dos 11, 12, 13 anos. Na rua, olhares de lado, assobios, frases ditas ao ouvido, às vezes mãos que nos tocam o corpo. No autocarro, no metro, tipos que se encostam, nos apalpam, quase sempre no meio das enchentes na hora de ponta. É assim que começa e não vai parar nunca. Todas nós sabemos o que é isso, porque tivemos, muito novinhas, de desenvolver uma espécie de armadura, de carapaça para nos protegermos, uma espécie de insensibilidade, que nos permitisse não nos sentirmos demasiado tocadas por este tipo de agressão; que nos permitisse conservar a auto-estima ao abrigo destes "arranhões e pequenos cortes". O que quer dizer que precisámos de ignorar a dor, a humilhação e a revolta que tais actos nos provocaram. Tenho a certeza de que não há uma única mulher no mundo que não tenha, pelo menos, uma história de assédio para contar. E é por isso que estamos fartas. É por isso que precisamos de dizer, a uma voz: deixa marca sim. Magoa sim. Enoja. Humilha. E chega. Chega de assédio. Mexeu com uma, mexeu com todas.

#ChegaDeAssédio
#MexeuComUmaMexeuComTodas

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