Isto para mim é básico mas vou dizê-lo na mesma
O assédio e o abuso que a larga maioria das mulheres sofre não chega às notícias, nem à televisão, tão-pouco às redes sociais, porque elas são, no geral, mulheres anónimas, sem qualquer poder, com empregos precários e vidas, muitas vezes, marginais. Quando mulheres com visibilidade mediática se chegam à frente para denunciar situações de abuso, como foi o caso do movimento #meetoo, que surgiu na sequência das alegações e acusações de agressão sexual ao produtor cinematográfico Weinstein, nos EUA, elas estão, acima de tudo, a dar um exemplo de união e de força no combate a um sistema que permite que os poderosos abusem dos mais fracos. Que se organizem e se vistam de preto como forma de protesto durante a cerimónia de entrega dos Globos de Ouro só mostra que estão unidas numa causa que é milenar e que finalmente está a ser falada, discutida, denunciada e a começar a ser levada a sério. Isto, quanto a mim, devia deixar-nos solidárias.
As mulheres são as piores inimigas delas mesmas; não sabem unir-se nem cooperar umas com as outras: ouvimos frases deste tipo tantas vezes e, infelizmente, parece-me, o que se está a passar é um retrato disso mesmo. Pois quando um grupo de mulheres ousa denunciar os seus abusadores, não é raro que logo se levantem vozes apelidando-as de histéricas, puritanas, sugerindo que não passam de mulheres frustradas sexualmente, que odeiam os homens; que precisavam era de ser assediadas todos os dias para serem felizes, como sugeriu uma escritora brasileira, Danuza Leão. Vimos isso acontecer também no Brasil, no caso da acusação ao actor José Mayer, que levantou uma onda de solidariedade entre mulheres e deu origem ao #MexeuComUmaMexeuComTodas e #ChegaDeAssédio; também aqui não faltaram críticas.
Sim, acho um exagero haver quem assine contratos ou grave vídeos prévios a um contacto sexual com a declaração explícita do consentimento. É um exagero e é ridículo. Assim como censurar obras de arte só porque representam nudez é aviltante. Mas atitudes destas não podem e não devem fazer-nos duvidar da importância das denúncias das vítimas de assédio, nem relativizá-la. A exposição do sistema que permite situações de abuso continuado não pode ser comprometida nem posta em causa pelo facto de, por um lado, o puritanismo ganhar adeptos e poder para censurar exposições em lugares públicos, e, por outro, umas quantas pessoas entrarem em histeria e, aparentemente, já não confiarem no bom-senso de quem escolhem para parceiro sexual. Estas situações têm de ser, elas mesmas, expostas, denunciadas e combatidas no seu próprio terreno.
Também sou completamente contra julgamentos em praça pública e existência de sanções e represálias a quem ainda não foi julgado e condenado. Porém, mais uma vez, isso não nos pode levar a questionar as vítimas como se fossem crianças caprichosas: "estão a ver o que conseguiram com a vossa atitude?" Isto é grave e perverso, porque inverte a situação e culpabiliza a vítima (o que não é nada de novo). O agressor é sempre o único responsável pelo seu comportamento, é bom não esquecer, e, em última análise, as consequências, justas ou injustas, desse comportamento só a ele podem ser imputadas.
Na minha opinião, o afastamento de actores como Kevin Spacey, apanhados na onda de acusações, de papéis para os quais já havia compromisso contratual, reflecte, antes de mais, as fraquezas de um sistema laboral que não protege os direitos dos trabalhadores; as mesmas que permitem que mulheres grávidas sejam dispensadas dos seus cargos ou que as mulheres não sejam contratadas à partida por poderem vir a engravidar. É para aqui que devemos direccionar a nossa intolerância e indignação, e não para as vítimas que denunciam situações de assédio.
Por outro lado, não me parece nada bem deixarmos de apreciar o trabalho artístico de alguém só porque achamos que esse alguém é uma besta. Mas isto sou eu; não me permito julgar quem o faça. O que não pode acontecer é as pessoas cometerem crimes e ficarem impunes, não sofrendo as consequências dos seus actos. Mas claro, temos de as julgar primeiro. A perversão, aqui, é a tão usual falta de julgamento imparcial da própria justiça quando no banco dos réus se sentam os poderosos. E disso até temos exemplos bastantes no nosso país, e recentes.
E o que dizer da carta aberta subscrita por cerca de cem intelectuais francesas, que reconhece a violação e o abuso como crimes, e que se solidariza com a sua denúncia, mas que ao mesmo tempo acha que o movimento #meetoo deu lugar a excessos e exageros, a um puritanismo escusado, que os homens têm o direito de importunar as mulheres e que a não existência desse direito compromete a liberdade sexual? Eu diria que vai aqui uma grande confusão.
Para começar, que querem elas dizer com importunar? É que se se estão a referir a actos de sedução, escusavam de vir explicitá-lo, porque o que está em causa no movimento #meetoo são situações claras de assédio. E se estão a dizer que os homens têm o direito de assediar, das duas uma, ou não sabem a diferença entre assédio e sedução ou então estão claramente a defender as mesmas situações que começaram por concordar serem crimes graves, o que no mínimo é grave e absurdo.
Ninguém põe em causa a liberdade de seduzir; e os jogos de sedução podem levar, sim, a situações de embaraço e constrangimento; eu posso ser tão desajeitada a seduzir que acabo por criar uma situação desagradável; as relações humanas são cheias de imprevistos e comportam erros de comportamento, até porque somos todos diferentes uns dos outros e cada indivíduo tem os seus limites em relação ao que é ou não aceitável. E sim, temos o direito de seduzir com insistência, e paixão, e determinação, e assertividade. Mas caramba, alguém confunde isto com assédio sexual?
Assédio é quando alguém faz uso do próprio poder (que pode ser apenas a força física mas vai muito para além disso) para impor uma situação que pode ir do simples toque corporal à violação, sem o consentimento da outra pessoa. Repito: sem o consentimento da outra pessoa. Isto é, a outra pessoa mostra claramente, de forma verbal e/ou não verbal, que não está interessada, que não quer. E se por acaso não se manifesta é porque está claramente a ser ameaçada ou coagida, ou porque, lá está, a relação de poder/submissão com o seu agressor a deixa sem alternativa.
E aqui, não me agrada nada a ridicularização de que este assunto tem sido alvo, com a conversa dos toques no joelho, ou no ombro, ou os beijos roubados. Mais uma vez, estamos a desviar a nossa atenção da gravidade do assédio. Qualquer toque que não seja consentido ou que seja forçado é grave; como é evidente há vários graus de gravidade; a violação forçada do espaço corporal é, contudo, e em si mesma, uma situação de claro desrespeito e ameaça à integridade física e psíquica de um indivíduo. Só quem nunca sofreu este tipo de toque indesejado é que pode cair no erro de minimizar a sua gravidade. E mais uma vez, não confundamos, não falamos de toques ocasionais e mais ou menos inocentes durante uma conversa amigável, um momento de maior intimidade ou uma tentativa de sedução.
É evidente que é complicado legislar acerca de assuntos como este, que comportam em certa medida elevados graus de subjectividade. Mas isso, mais uma vez, não nos pode fazer desistir. No caso do crime de agressão física, por exemplo, ninguém duvida que a sua legislação seja um imperativo. E também podemos argumentar que um beliscão ou uma chapada não têm a mesma gravidade que matar alguém. Pois não, mas isso não desqualifica esses actos como agressões. Por outro lado, uma nódoa negra pode ser devida a uma queda ou a um encontrão; como vamos provar que foi consequência de uma agressão? Estas questões são pertinentes em termos de procedimentos legislativos, no entanto, ninguém põe em causa a necessidade da sua existência. Porque havemos de deixar que isso aconteça com o crime de assédio?
A liberdade de importunar que as senhoras francesa defendem é, quanto a mim, a liberdade de seduzir, que claramente deve ser mantida. Muito bem, se se tratava disso, escusavam de diminuir a importância do movimento #meetoo. A meu ver, onde a carta peca é precisamente na confusão que faz entre assédio e sedução, sugerindo que as mulheres que se chegaram à frente para denunciar casos de assédio estão a comprometer a liberdade sexual, a liberdade de importunar, de incomodar; fica assim no ar que isto é uma questão de liberdade. Esta generalização é perigosa. E o uso das palavras de forma abrangente, neste caso, gera equívocos e ignora o centro da questão, que é o assédio. Porque defender a liberdade e o direito de incomodar são valores preciosos a uma sociedade autónoma e madura e uma das funções essenciais do trabalho artístico. Mas a palavra incomodar, nesse contexto preciso, tem que ver com questões ideológicas; incomodar é fazer pensar, questionar, derrubar preconceitos, criar novos paradigmas. Incomodar alguém num contexto de assédio é outra coisa; é não respeitar o seu espaço de privacidade, a sua integridade física, é transgredir os seus limites, tanto físicos como emocionais. Precisamos de ser mais cuidadosos com as palavras e os seus significados, para que as mensagens sejam o mais claras possível e não dêem lugar a mal entendidos.
E por favor, não apelidemos este movimento de caça às bruxas. Isso era na idade média e as vítimas mulheres vulneráveis, na sua grande maioria, sem outra acusação que não fosse a de serem mulheres e vulneráveis. O equivalente do #meetoo na idade média, para sermos rigorosos do ponto de vista histórico, seria as chamadas bruxas terem tido a força e o poder de se unirem contra os seus algozes. A diferença entre os tempos actuais e a idade média é que, hoje em dia, as vítimas de abuso não são caçadas e executadas sumariamente. E não nos podemos esquecer que há sociedades que ainda conservam, nas suas práticas sociais e poderes instituídos, versões desta violência medieval contra mulheres e grupos mais vulneráveis, como castas e classes consideradas inferiores na hierarquia social, pessoas sem terra, homossexuais, transsexuais... Os exemplos são inúmeros.
Porque não percebemos de uma vez, mulheres e também homens, que é contra esta violência que devemos unir-nos? E isto não significa que não possamos discutir e argumentar e discordar; significa tão-só que, em lugar de nos boicotarmos umas às outras, nos mostremos solidárias e encontremos caminhos que minem de uma vez a mentalidade machista que nos assola há séculos, e que permite, por exemplo, que um juiz em Portugal ilibe dois agressores por a vítima ter cometido adultério. Isto é medieval, aconteceu há meses no nosso país e eu vi muita gente indignada, é um facto, mas depois a coisa passa e fica por aí... E os poderosos protegem-se uns aos outros e nós baixamos a cabeça.
Talvez fosse mais proveitoso olharmos para o exemplo do #meetoo e iniciarmos ondas de contestação semelhantes que realmente vingassem e abanassem alguns dos poderes instituídos. Em suma, não permitir que o que nos divide nos enfraqueça; antes usá-lo para garantir a diversidade e o respeito (de opiniões, de pontos de vista); e que, dessa diversidade possamos aprender uns com os outros, fortalecendo-nos. Para mim, é este o legado do #meetoo que importa preservar.
As mulheres são as piores inimigas delas mesmas; não sabem unir-se nem cooperar umas com as outras: ouvimos frases deste tipo tantas vezes e, infelizmente, parece-me, o que se está a passar é um retrato disso mesmo. Pois quando um grupo de mulheres ousa denunciar os seus abusadores, não é raro que logo se levantem vozes apelidando-as de histéricas, puritanas, sugerindo que não passam de mulheres frustradas sexualmente, que odeiam os homens; que precisavam era de ser assediadas todos os dias para serem felizes, como sugeriu uma escritora brasileira, Danuza Leão. Vimos isso acontecer também no Brasil, no caso da acusação ao actor José Mayer, que levantou uma onda de solidariedade entre mulheres e deu origem ao #MexeuComUmaMexeuComTodas e #ChegaDeAssédio; também aqui não faltaram críticas.
Sim, acho um exagero haver quem assine contratos ou grave vídeos prévios a um contacto sexual com a declaração explícita do consentimento. É um exagero e é ridículo. Assim como censurar obras de arte só porque representam nudez é aviltante. Mas atitudes destas não podem e não devem fazer-nos duvidar da importância das denúncias das vítimas de assédio, nem relativizá-la. A exposição do sistema que permite situações de abuso continuado não pode ser comprometida nem posta em causa pelo facto de, por um lado, o puritanismo ganhar adeptos e poder para censurar exposições em lugares públicos, e, por outro, umas quantas pessoas entrarem em histeria e, aparentemente, já não confiarem no bom-senso de quem escolhem para parceiro sexual. Estas situações têm de ser, elas mesmas, expostas, denunciadas e combatidas no seu próprio terreno.
Também sou completamente contra julgamentos em praça pública e existência de sanções e represálias a quem ainda não foi julgado e condenado. Porém, mais uma vez, isso não nos pode levar a questionar as vítimas como se fossem crianças caprichosas: "estão a ver o que conseguiram com a vossa atitude?" Isto é grave e perverso, porque inverte a situação e culpabiliza a vítima (o que não é nada de novo). O agressor é sempre o único responsável pelo seu comportamento, é bom não esquecer, e, em última análise, as consequências, justas ou injustas, desse comportamento só a ele podem ser imputadas.
Na minha opinião, o afastamento de actores como Kevin Spacey, apanhados na onda de acusações, de papéis para os quais já havia compromisso contratual, reflecte, antes de mais, as fraquezas de um sistema laboral que não protege os direitos dos trabalhadores; as mesmas que permitem que mulheres grávidas sejam dispensadas dos seus cargos ou que as mulheres não sejam contratadas à partida por poderem vir a engravidar. É para aqui que devemos direccionar a nossa intolerância e indignação, e não para as vítimas que denunciam situações de assédio.
Por outro lado, não me parece nada bem deixarmos de apreciar o trabalho artístico de alguém só porque achamos que esse alguém é uma besta. Mas isto sou eu; não me permito julgar quem o faça. O que não pode acontecer é as pessoas cometerem crimes e ficarem impunes, não sofrendo as consequências dos seus actos. Mas claro, temos de as julgar primeiro. A perversão, aqui, é a tão usual falta de julgamento imparcial da própria justiça quando no banco dos réus se sentam os poderosos. E disso até temos exemplos bastantes no nosso país, e recentes.
E o que dizer da carta aberta subscrita por cerca de cem intelectuais francesas, que reconhece a violação e o abuso como crimes, e que se solidariza com a sua denúncia, mas que ao mesmo tempo acha que o movimento #meetoo deu lugar a excessos e exageros, a um puritanismo escusado, que os homens têm o direito de importunar as mulheres e que a não existência desse direito compromete a liberdade sexual? Eu diria que vai aqui uma grande confusão.
Para começar, que querem elas dizer com importunar? É que se se estão a referir a actos de sedução, escusavam de vir explicitá-lo, porque o que está em causa no movimento #meetoo são situações claras de assédio. E se estão a dizer que os homens têm o direito de assediar, das duas uma, ou não sabem a diferença entre assédio e sedução ou então estão claramente a defender as mesmas situações que começaram por concordar serem crimes graves, o que no mínimo é grave e absurdo.
Ninguém põe em causa a liberdade de seduzir; e os jogos de sedução podem levar, sim, a situações de embaraço e constrangimento; eu posso ser tão desajeitada a seduzir que acabo por criar uma situação desagradável; as relações humanas são cheias de imprevistos e comportam erros de comportamento, até porque somos todos diferentes uns dos outros e cada indivíduo tem os seus limites em relação ao que é ou não aceitável. E sim, temos o direito de seduzir com insistência, e paixão, e determinação, e assertividade. Mas caramba, alguém confunde isto com assédio sexual?
Assédio é quando alguém faz uso do próprio poder (que pode ser apenas a força física mas vai muito para além disso) para impor uma situação que pode ir do simples toque corporal à violação, sem o consentimento da outra pessoa. Repito: sem o consentimento da outra pessoa. Isto é, a outra pessoa mostra claramente, de forma verbal e/ou não verbal, que não está interessada, que não quer. E se por acaso não se manifesta é porque está claramente a ser ameaçada ou coagida, ou porque, lá está, a relação de poder/submissão com o seu agressor a deixa sem alternativa.
E aqui, não me agrada nada a ridicularização de que este assunto tem sido alvo, com a conversa dos toques no joelho, ou no ombro, ou os beijos roubados. Mais uma vez, estamos a desviar a nossa atenção da gravidade do assédio. Qualquer toque que não seja consentido ou que seja forçado é grave; como é evidente há vários graus de gravidade; a violação forçada do espaço corporal é, contudo, e em si mesma, uma situação de claro desrespeito e ameaça à integridade física e psíquica de um indivíduo. Só quem nunca sofreu este tipo de toque indesejado é que pode cair no erro de minimizar a sua gravidade. E mais uma vez, não confundamos, não falamos de toques ocasionais e mais ou menos inocentes durante uma conversa amigável, um momento de maior intimidade ou uma tentativa de sedução.
É evidente que é complicado legislar acerca de assuntos como este, que comportam em certa medida elevados graus de subjectividade. Mas isso, mais uma vez, não nos pode fazer desistir. No caso do crime de agressão física, por exemplo, ninguém duvida que a sua legislação seja um imperativo. E também podemos argumentar que um beliscão ou uma chapada não têm a mesma gravidade que matar alguém. Pois não, mas isso não desqualifica esses actos como agressões. Por outro lado, uma nódoa negra pode ser devida a uma queda ou a um encontrão; como vamos provar que foi consequência de uma agressão? Estas questões são pertinentes em termos de procedimentos legislativos, no entanto, ninguém põe em causa a necessidade da sua existência. Porque havemos de deixar que isso aconteça com o crime de assédio?
A liberdade de importunar que as senhoras francesa defendem é, quanto a mim, a liberdade de seduzir, que claramente deve ser mantida. Muito bem, se se tratava disso, escusavam de diminuir a importância do movimento #meetoo. A meu ver, onde a carta peca é precisamente na confusão que faz entre assédio e sedução, sugerindo que as mulheres que se chegaram à frente para denunciar casos de assédio estão a comprometer a liberdade sexual, a liberdade de importunar, de incomodar; fica assim no ar que isto é uma questão de liberdade. Esta generalização é perigosa. E o uso das palavras de forma abrangente, neste caso, gera equívocos e ignora o centro da questão, que é o assédio. Porque defender a liberdade e o direito de incomodar são valores preciosos a uma sociedade autónoma e madura e uma das funções essenciais do trabalho artístico. Mas a palavra incomodar, nesse contexto preciso, tem que ver com questões ideológicas; incomodar é fazer pensar, questionar, derrubar preconceitos, criar novos paradigmas. Incomodar alguém num contexto de assédio é outra coisa; é não respeitar o seu espaço de privacidade, a sua integridade física, é transgredir os seus limites, tanto físicos como emocionais. Precisamos de ser mais cuidadosos com as palavras e os seus significados, para que as mensagens sejam o mais claras possível e não dêem lugar a mal entendidos.
E por favor, não apelidemos este movimento de caça às bruxas. Isso era na idade média e as vítimas mulheres vulneráveis, na sua grande maioria, sem outra acusação que não fosse a de serem mulheres e vulneráveis. O equivalente do #meetoo na idade média, para sermos rigorosos do ponto de vista histórico, seria as chamadas bruxas terem tido a força e o poder de se unirem contra os seus algozes. A diferença entre os tempos actuais e a idade média é que, hoje em dia, as vítimas de abuso não são caçadas e executadas sumariamente. E não nos podemos esquecer que há sociedades que ainda conservam, nas suas práticas sociais e poderes instituídos, versões desta violência medieval contra mulheres e grupos mais vulneráveis, como castas e classes consideradas inferiores na hierarquia social, pessoas sem terra, homossexuais, transsexuais... Os exemplos são inúmeros.
Porque não percebemos de uma vez, mulheres e também homens, que é contra esta violência que devemos unir-nos? E isto não significa que não possamos discutir e argumentar e discordar; significa tão-só que, em lugar de nos boicotarmos umas às outras, nos mostremos solidárias e encontremos caminhos que minem de uma vez a mentalidade machista que nos assola há séculos, e que permite, por exemplo, que um juiz em Portugal ilibe dois agressores por a vítima ter cometido adultério. Isto é medieval, aconteceu há meses no nosso país e eu vi muita gente indignada, é um facto, mas depois a coisa passa e fica por aí... E os poderosos protegem-se uns aos outros e nós baixamos a cabeça.
Talvez fosse mais proveitoso olharmos para o exemplo do #meetoo e iniciarmos ondas de contestação semelhantes que realmente vingassem e abanassem alguns dos poderes instituídos. Em suma, não permitir que o que nos divide nos enfraqueça; antes usá-lo para garantir a diversidade e o respeito (de opiniões, de pontos de vista); e que, dessa diversidade possamos aprender uns com os outros, fortalecendo-nos. Para mim, é este o legado do #meetoo que importa preservar.