Distância de Insegurança - Diário da Pandemia
7 de Abril 2020
Os escritores dividem-se em dois grupos: os que trabalham noutra actividade e meia-dúzia de afortunados que se podem dedicar inteiramente à escrita. Estes últimos, geralmente, passam a vida fechados em casa; os mais sortudos a escrever, e os outros, que na maioria dos casos são outras, a fazer malabarismos domésticos para conseguir escrever. Atenção que estou a falar na generalidade. Sei que há muitos homens que se dedicam às tarefas domésticas. Põem o lixo lá fora, por exemplo. E depois fica o caixote sem saco do lixo. Ou a roupa na máquina, mas encontrar o programa requer toda uma técnica que lhes deixa os neurónios à beira de um colapso. Também tiram a louça da máquina, e depois andamos à procura da tampa da panela e encontramo-la na gaveta dos panos e das pegas. E cozinham, claro, mas só se não tiverem de picar cebola. É que devem ter as glândulas lacrimais mais sensíveis, não sei. Ou então acham que um deve homem chorar, sim senhor, mas nunca por causa de uma cebola. Bom, mas onde eu queria chegar era aqui: a quarentena de um escritor (desses que pertencem à tal meia-dúzia) não é muito diferente da vida normal, se é que algum se pode gabar de ter uma. Normal, quero dizer, não vida, obviamente; e, ainda assim, esta questão poderia conduzir-nos por interessantes atalhos reflexivos, uma vez que, tantas vezes, sentimos que temos, não uma, mas várias vidas; outros haverá que penam por nem uma conseguir ter, digna desse nome, pois, não raro, somos assaltados por essa incapacidade de viver a vida do comum dos mortais. Já me estou a dispersar outra vez. Vamos a exemplos práticos: os meus dias de quarentena até que têm sido mais animados do que os outros. Para começar, tenho saído quase todos os dias para uma pequena caminhada. Estimo que daqui a pouco tempo não o possa fazer, pois parece-me que o governo vai ser obrigado a tomar medidas drásticas. É que as pessoas continuam a passear em grupo, jogar à bola, tomar banhos de sol, como se nada fosse. Portanto, daqui a uns dias, a minha quarentena ficará muito mais parecida com a vida normal. Também cozinho mais. A comida vai-se num instante. E às vezes, tenho a sensação de que voltei atrás no tempo: “Não se deitem tarde!”, “Arrumem o quarto, parece uma pocilga!”, “A roupa suja é para ir para o cesto!”, “Já é meio-dia, levantem-se!”, “Não te tenho visto fazer nada, além de dormir e jogar no computador!”... Uma espécie de regresso ao passado com dois miúdos de quase dois metros de altura. Por outro lado, tenho trabalhado mais. Entre projectos pessoais e colectivos, de escrita e tradução, o volume aumentou consideravelmente. Não me posso queixar de monotonia. Delícias da quarentena.
Unsafe Distancing - A Journal of the Pandemic
7 April 2020
Writers are split into two groups: those with another job and the half-dozen lucky ones who can dedicate themselves entirely to writing. The latter, generally, spend life shut inside their homes; the luckiest ones writing, and the others, who tend to be women, juggling domestic chores in order to be able to write. Note that I am generalising. I know there are many men who devote themselves to household tasks. They take the rubbish out, for example. And then leave the bin without a bag. Or they put the clothes in the machine, but find the programme has a knack to it that leaves their neurones on the brink of collapse. They also unload the dishwasher, and then we are left searching for the lid of a pan only to find it in the washcloth and tea towel drawer. And they cook, of course, but only if they don’t have to chop onions. I guess they must have more sensitive tear ducts. Or they think a man should cry, absolutely, but never because of an onion. Right, but what I was getting at is this: quarantine for a writer (one of said half dozen) is not very different to their normal life, if it can even be called that. Normal, that is, not a life, obviously; and, even so, this question could take us down some interesting paths of reflection, seeing as, so often, we feel like we have not one but various lives; others might lament not even having one worthy of the name, as, frequently, we are overcome by that inability to live the ordinary life of mortals. Once again, I digress. Let’s get to practical examples: my quarantine days have possibly been more exciting than those that came before. To start with, I have gone out almost every day for a short walk. I reckon that before long I won’t be able to do this, as it seems the government will be obliged to introduce drastic measures. The thing is, people keep walking in groups, playing football, sunbathing, as if it were nothing. As such, a few days from now, my quarantine will more closely resemble my normal life. I am also cooking more. The food disappears in a flash. And sometimes, I have the feeling I have travelled back in time: ‘Don’t stay up too late!’, ‘Tidy your room, it’s a pigsty!’, ‘Dirty clothes go in the basket!’, ‘Its midday, time to get up!’, ‘I haven’t seen you do anything but sleep and play on the computer!’… A sort of return to the past with two kids almost two metres tall. On the other hand, I have been working more. Between personal and collective projects, writing and translating, the volume has increased considerably. I can’t complain of boredom. The delights of quarantine.
Translated by Andrew McDougall
Andrew McDougall was born in Glasgow and studied Portuguese and English literature at the University of Edinburgh. He has also lived in Sussex, Lisbon, Coimbra, Logroño, Vitoria-Gasteiz and Norwich, where he completed an MA in Literary Translation. His work has included co-translating a book by José Eduardo Agualusa, and translating a chapter by Ana Cristina Silva as part of the Escape Goat project (www.escapegoat.world), on which he also collaborated as an editor. He translates from Portuguese and Spanish.