Por Este Mundo Acima, de Patrícia Reis
Movemo-nos numa noite escura. Os passos frágeis, à flor da escuridão. O ar irrespirável. Sobrevivemos, e não queremos crer nessa possibilidade. À nossa volta, o cenário esmagador da realidade, da destruição extrema. Percebe-se que aconteceu uma catástrofe nuclear a nível global; porém, os pormenores, os detalhes de tal cenário escasseiam. Apenas a geografia familiar completamente esventrada, exposta na sua estranha crueldade, uma crueza esmagadora. A minha leitura é a de que este cenário é apenas isso: um cenário, um pano de fundo, porque esta viagem é essencialmente interna. Os recantos cheios de sombras, a derrocada, os cadáveres dos edifícios, as bocas de esgoto a deitar por fora, o lixo, o cheiros, o arrepio do medo, estão cá dentro, dentro de cada um de nós, dentro de quem sobrevive todos os dias, e nessa busca desesperada volta à dimensão física, animal, da existência. Porque é no corpo e nas suas necessidades que tudo começa e acaba. É o corpo que é real, e, paradoxalmente, só o compreendemos quando o perdemos ou quando ficamos reduzidos a ele.
A luta pela sobrevivência é assim, passo a passo, segundo a segundo, pulsação a pulsação. É um tempo onde nos movemos sem rumo, sem saber a direcção, sem saber nada. E não há ninguém para perguntar o caminho, ao contrário da parábola da existência da boca e da consequente chegada a roma. É um caminho interno e solitário. Uma luta renhida pela lucidez, que começa nos gestos mais banais. E, ao mesmo tempo, o desespero de preservar a memória. Sem ela morremos de facto. Para um sobrevivente, a morte pode ser um consolo, quase um alívio. Para um sobrevivente, cada movimento dói, uma chaga permanente chamada vida. Mas, em lugar de se render ao abraço da morte, da desistência, ele continua em frente, teimoso, raivoso, numa obstinação que tem tanto de desespero como de instintivo. O animal, a fera em acção. A vida, que afinal se conquista, a deitar as garras de fora.
Percebemos, assim, que o mundo está cheio deles. Sobreviventes. Antes ou depois do acidente, pouco importa. Afinal, o acidente apenas veio definir, exteriorizar, uma catástrofe que se desenhava há muito no horizonte, um cataclismo secular, um poço sem fundo, uma tragédia planetária, que sempre nos acompanhou na vida privada. Agora é posta cá fora, no rosto do mundo. Podemos então olhá-la de outros prismas, conhecê-la, interpretá-la. Não com raciocínios, mas com as emoções à flor da pele. Vemos a busca do sentido. Da memória. Dos livros. Os livros que contam estórias e fazem história. As pessoas de outrora, os amigos, pequenos deuses distantes no paraíso de outra vida, que antes de ser outra era o inferno de todos os dias. O preto transforma-se em branco e o branco em cinzento. Todavia, temos mãos, temos tintas e pincéis, que ficaram da outra vida. É só pegar neles e pintar. A criança que se encontra e nos devolve tudo, de uma assentada, tudo aquilo que julgáramos perdido, tudo o que já não acreditávamos ser possível. Com ela vemos o mundo como se fosse a primeira vez; a destruição passa a ser o cenário primeiro, o ponto de partida; e como mostrar o passado, o que foi destruído, como trazê-lo para o presente, como oferecê-lo às novas gerações? E de súbito, percebemos que o cenário mudou. Abriu-se uma porta, apareceu uma luz, não temos a certeza. O cenário ainda são as ruínas; porém, tudo está diferente. As pessoas falam (as mesmas que antes não falavam, e eram apenas sombras passando ao longe), trocam sorrisos e palavras, trocam coisas; coisas simples, pequenos objectos, e coisas maiores, alegrias, tristezas, estados de alma, e juntas descobrem o poder da partilha, de construir algo em comum. Como se fosse a primeira vez. Assistimos ao renascimento do mundo, da vida, como se a vida fosse uma coisa abstracta, exterior, uma língua estrangeira que precisamos de aprender a decifrar. Experimentamos os sentimentos básicos dessa vida, como quem prova colheres tímidas de sabores desconhecidos: o amor, a amizade, a mulher, o homem, uma criança, um filho, a morte, a raiva, a agressividade, a luta, a coragem, a partilha, o egoísmo, a solidão, a solidariedade, a cumplicidade. O medo, esse, é aquele que já conhecemos de cor, de tanto lhe calçar os sapatos e calcorrear os caminhos. O medo, esse animal que se esconde na toca, encolhido, assustado, e que, ao sentir-se encurralado, se pode tornar gregário, primeiro por desespero, por não ter para onde fugir; depois, e ao perceber, pela primeira vez, um medo igualzinho ao seu no rosto estranho que o olha. E assim nasce aquela flor frágil chamada esperança.
A luta pela sobrevivência é assim, passo a passo, segundo a segundo, pulsação a pulsação. É um tempo onde nos movemos sem rumo, sem saber a direcção, sem saber nada. E não há ninguém para perguntar o caminho, ao contrário da parábola da existência da boca e da consequente chegada a roma. É um caminho interno e solitário. Uma luta renhida pela lucidez, que começa nos gestos mais banais. E, ao mesmo tempo, o desespero de preservar a memória. Sem ela morremos de facto. Para um sobrevivente, a morte pode ser um consolo, quase um alívio. Para um sobrevivente, cada movimento dói, uma chaga permanente chamada vida. Mas, em lugar de se render ao abraço da morte, da desistência, ele continua em frente, teimoso, raivoso, numa obstinação que tem tanto de desespero como de instintivo. O animal, a fera em acção. A vida, que afinal se conquista, a deitar as garras de fora.
Percebemos, assim, que o mundo está cheio deles. Sobreviventes. Antes ou depois do acidente, pouco importa. Afinal, o acidente apenas veio definir, exteriorizar, uma catástrofe que se desenhava há muito no horizonte, um cataclismo secular, um poço sem fundo, uma tragédia planetária, que sempre nos acompanhou na vida privada. Agora é posta cá fora, no rosto do mundo. Podemos então olhá-la de outros prismas, conhecê-la, interpretá-la. Não com raciocínios, mas com as emoções à flor da pele. Vemos a busca do sentido. Da memória. Dos livros. Os livros que contam estórias e fazem história. As pessoas de outrora, os amigos, pequenos deuses distantes no paraíso de outra vida, que antes de ser outra era o inferno de todos os dias. O preto transforma-se em branco e o branco em cinzento. Todavia, temos mãos, temos tintas e pincéis, que ficaram da outra vida. É só pegar neles e pintar. A criança que se encontra e nos devolve tudo, de uma assentada, tudo aquilo que julgáramos perdido, tudo o que já não acreditávamos ser possível. Com ela vemos o mundo como se fosse a primeira vez; a destruição passa a ser o cenário primeiro, o ponto de partida; e como mostrar o passado, o que foi destruído, como trazê-lo para o presente, como oferecê-lo às novas gerações? E de súbito, percebemos que o cenário mudou. Abriu-se uma porta, apareceu uma luz, não temos a certeza. O cenário ainda são as ruínas; porém, tudo está diferente. As pessoas falam (as mesmas que antes não falavam, e eram apenas sombras passando ao longe), trocam sorrisos e palavras, trocam coisas; coisas simples, pequenos objectos, e coisas maiores, alegrias, tristezas, estados de alma, e juntas descobrem o poder da partilha, de construir algo em comum. Como se fosse a primeira vez. Assistimos ao renascimento do mundo, da vida, como se a vida fosse uma coisa abstracta, exterior, uma língua estrangeira que precisamos de aprender a decifrar. Experimentamos os sentimentos básicos dessa vida, como quem prova colheres tímidas de sabores desconhecidos: o amor, a amizade, a mulher, o homem, uma criança, um filho, a morte, a raiva, a agressividade, a luta, a coragem, a partilha, o egoísmo, a solidão, a solidariedade, a cumplicidade. O medo, esse, é aquele que já conhecemos de cor, de tanto lhe calçar os sapatos e calcorrear os caminhos. O medo, esse animal que se esconde na toca, encolhido, assustado, e que, ao sentir-se encurralado, se pode tornar gregário, primeiro por desespero, por não ter para onde fugir; depois, e ao perceber, pela primeira vez, um medo igualzinho ao seu no rosto estranho que o olha. E assim nasce aquela flor frágil chamada esperança.