Transpiração
A água ferve.
A cabeça voa.
O pensamento corre, da faixa azul de azulejos em cima do fogão para a parede branca, e desta para o brilho metálico dos talheres lavados.
A água a ferver.
A cabeça a latejar.
O pensamento a correr pelo chão de mosaicos, a deter-se na linha de luz junto à porta, um bocado de sol a rasgar o chão. O chão líquido no olhar alucinado.
A tua voz já não mora aqui. Há muito que o desejo da tua voz lhe ocupou o lugar, na mesa da cozinha, no sofá da sala, no lado direito da cama.
O desejo da tua voz é o mais parecido que há com uma dor de ouvidos.
A água ferve. O vapor espalha-se no ar tépido.
Levanto-me e apago o lume. Tiro uma caneca da prateleira e um pacote de chá da caixa preta, com letras brancas, onde a palavra chá é, de súbito, uma obscenidade.
Num relance, vejo-te o corpo nu, a escorrer água, saído do duche. A toalha turca numa intimidade que me arrepia os cabelos da nuca. A tua boca húmida, ligeiramente aberta, a deixar entrever o branco dos dentes.
E uma palavra, puta, a escorrer-te dos lábios.
O vapor bate-me no rosto, enquanto despejo a água na caneca. O pacote de chá perverte momentaneamente a lei da gravidade, sangrando, o mar em ebulição à sua volta. E é então que vejo o meu coração em ruínas.