O Último Natal
A mulher olha a árvore de natal em silêncio. O marido está morto há muito; os filhos, num país distante. Ou terá sido ela que se ausentou para parte incerta, não tem a certeza. As velas com aroma a canela e tangerina luzem na solidão da mesa posta. Quatro pratos dispostos geometricamente, os copos altos em que a luz sanguínea de um Porto velho arde juntamente com as velas. O fumo dança no silêncio que se abate nos pratos vazios. A fruta na cristaleira adquire tons de ébano. Os minutos escorrem, vagarosos. Da casa vizinha chega-lhe o burburinho de vozes, garfos e facas em laborioso fragor, gargalhadas a espaços com o tilintar dos copos que ela adivinha de pé alto, elegantes, reluzindo a textura suave dos vinhos espumantes. E de súbito está à volta da mesa, na casa dos avós, acompanhada por aqueles que tão bem conhece, metade já mortos, mas ainda a sorrirem-lhe do espelho da memória. O espelho falso, mentiroso, da memória. Podia começar tudo de novo, pensa, enquanto se deixa inebriar pel...