A minha apresentação no Festival Literário da Madeira, Abril de 2016
«Há livros que se premeditam, há livros que nos
acontecem» Eduardo Prado Coelho
A
palavra premeditação tem, para mim, uma conotação quase imediata com frieza e
calculismo; mais depressa a associo a crimes inconfessáveis do que a livros.
Quem sabe por isso, ao ler esta frase, comecei, involuntariamente, a
transformar o seu significado noutra coisa qualquer.
Deste
modo, dividi a palavra em duas: pré + meditação
A
palavra meditação pode ter dois significados:
- Acto
de reflectir, pensar sobre um assunto de forma profunda;
Estes
dois significados parecem, aparentemente, contraditórios. Como é que se
reflecte sobre um assunto esvaziando a mente de pensamentos? A não ser que a
mente passe a reflectir como reflectem os espelhos, tal parece tarefa impossível.
Por
outro lado, existe uma diferença subtil entre dizer, “eu pensei sobre o
assunto” e “eu meditei sobre o assunto.” Meditar implica uma profundidade
diferente, quem sabe uma natureza de pensamento diferente.
O
que nos distingue dos outros primatas, em termos cerebrais, é o desenvolvimento
do córtex cerebral, que deu origem ao chamado neocórtex. Nele estão localizadas
tanto as competências linguísticas como as competências dos processos de
pensamento superior: pensamento abstracto e científico, raciocínio lógico, etc.
É devido ao papel do neocórtex que a imaginação e a fantasia se encontram
desenvolvidas, na nossa espécie, da forma única que conhecemos.
Ora
então, quem sabe, a meditação implique um adormecimento, uma anulação dos
processos superiores do pensamento, ou seja, um esvaziamento mental de todo e
qualquer pensamento produzido pelo neocórtex, para assim deixar que o nosso
cérebro primitivo, aquelas regiões do cérebro que temos em comum com os outros
primatas, entrem em acção. Meditar seria, assim, tanto a ausência de qualquer
pensamento lógico e abstracto, como acarretaria um pensamento de natureza
diferente, porque produzido em regiões do cérebro mais primitivas, sem a
interferência das chamadas zonas superiores.
Sob
o efeito da meditação, algumas pessoas descrevem um estado de paz interior, de
plenitude, de sensação de harmonia com a natureza e com os outros. Alguns
descrevem também experiências de expansão mental, como se a mente se libertasse
do corpo, transcendesse os seus limites. Há também, dentro deste contexto,
relatos de experiências de conexão com outras almas, como se de alguma forma
houvesse um espaço de consciência colectiva que pudesse ser partilhado por toda
a humanidade. Eu chamaria a isto experiências de comunhão empática.
Voltemos
agora à premeditação, ou pré-meditação. Ora a palavra pré refere-se ao preparo
de algo ou ao que está antes do início. Pré-meditação será então o estado
anterior à meditação, ou seja, o estado que antecede o esvaziar da mente, na
linha de raciocínio de há pouco. Desta forma, no estado de pré-meditação, ainda
nos encontramos na posse de todos os processos de pensamento lógico e
abstracto, onde se incluem a imaginação e a fantasia.
Os
livros que se premeditam seriam, assim, os livros que se pré-meditam. Dito de
outra forma, os livros que vivem dentro da nossa cabeça. É, aliás, este o local
de gestação de todos os livros: antes de os escrevermos, os livros habitam o
nosso pensamento. É o momento de imaginar as personagens e o enredo, fantasiar
os cenários, a época, o destino das personagens. O livro toma conta de nós e
dos nossos pensamentos; apesar de não escrevermos uma frase que seja, somos
constantemente habitados por palavras, esboços de personagens e lugares,
diálogos, enredos, tramas, paixões, desgostos; outras vidas, em suma. O livro
vai-se construindo de forma idealizada, grandiosa; é também o momento da dúvida
existencial na nossa capacidade de o escrever. Decerto, o livro que imaginamos
nunca é o livro que escrevemos.
Porque
quando o livro nos acontece, e ele acontece a partir do momento em que
começamos a escrevê-lo, entramos no estado seguinte, o da meditação, que traz o
vazio da mente e os tais processos de pensamento primitivos. O livro acontece
quando pomos de lado pensamento, fantasia e imaginação e metemos mãos à obra; quando
entramos para dentro do enredo, vestimos a pele das personagens e as trazemos à
vida. É quase um parto, no verdadeiro sentido da palavra: durante meses
imaginámos e fantasiámos o nosso bebé e finalmente temo-lo ali, roxo, coberto
de muco, chorando a plenos pulmões. O bebé imaginado morre naquele segundo para
dar lugar ao bebé real e ao nascimento de um pai e de uma mãe. O livro
imaginado também morre no segundo em que se materializa nas nossas palavras, as
palavras que serão as escolhidas de entre as imaginadas. O livro de carne e
osso é feito da acção de encontrar essas palavras-tijolo e com elas construir
edifícios, catedrais, ruas, cidades, países, continentes, universos. Dar corpo
e alma a outras pessoas e entrar-lhes para dentro da pele, da cabeça, calçar os
seus sapatos, falar pela sua boca, pensar os seus pensamentos, sofrer os seus
desgostos, rir as suas alegrias, em suma, viver os seus dias.
É
de salientar que, nesta fase de meditação, em que o livro nos está a acontecer,
e em que a nossa mente se esvazia de pensamentos, o fundamental é atingir o tal
estado de comunhão empática de que há pouco falava. É através desse estado
mental de fusão com o outro, possível devido à empatia, que as personagens
ganham vida.
Os
livros que se premeditam tornam-se, assim, em todos os livros, os escritos e os
não escritos; os livros que nos acontecem naqueles, de entre os premeditados,
que escrevemos de facto.