O meu contributo para o Festivalinho Literário Infantil da Madeira, Abril de 2016
«Todas as crianças do Mundo
devem ser concebidas como seres nascidos para ler» Lídia Jorge
"Falamos em ler e
pensamos apenas nos livros. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto
universo. Nós lemos emoção nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens,
lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas
da intenção de descoberta do nosso olhar."
Mia Couto
Eu diria que, nisso, as
crianças são exímias. Já dentro da barriga das mães os bebés lêem: lêem o bater
do coração, o sopro da respiração, o fluxo sanguíneo, a digestão, o trânsito
intestinal e todo o universo de ruídos que acompanha estes mecanismos. Lêem a
obscuridade e a luz, vermelha porque atravessa a carne (como a luz que se
incendeia quando olhamos para o sol através dos dedos), lêem a obscuridade e a luz,
dizia, que com eles mora naquele espaço aquático, morno, aconchegante que é o
útero materno. Ler é ver e ouvir o mundo e, acima de tudo, senti-lo.
Uma vez fora do útero, os
bebés são submetidos a uma avalanche de novos sinais, novas páginas, novas
leituras. Tudo é novo. E eles continuam a ler, amparados na página-mãe a quem
recorrem em busca de significados familiares que os ajudem nos códigos acabados
de estrear da interpretação do mundo. Os bebés recém nascidos, aliás, são
especialistas em identificação, decifração e distinção, três características
indispensáveis à leitura: com apenas horas de vida são capazes de identificar
tanto o cheiro do leite como a voz da mãe.
À medida que crescem, irão
especializar-se na leitura de emoções, principalmente aquelas que lêem na face
humana. Desde a nascença, os bebés reagem à face humana com vocalizações e
padrões de comportamento que constituem os primórdios da interacção social. A
face humana é, assim, uma das páginas principais do livro-mundo.
Os bebés são também exímios a
ler as condições climáticas do estado de espírito de quem os rodeia, com muito
mais competência do que os adultos. Apesar de ainda não saberem o que significa
a tristeza, ou a alegria, ou a raiva, ou a melancolia, ou a irritação – a sua
mente ainda não se desenvolveu o suficiente para possuir sequer o significado
de conceito – eles sabem intuitivamente identificar todo o especto das emoções
humanas e possuem também uma capacidade inata de reagir a cada uma dessas
emoções. Os bebés estão, assim, a ler constantemente os nossos rostos, o nosso
olhar, os nossos gestos, o som da nossa voz, a nossa vitalidade e energia – em
suma, a nossa humanidade.
De notar que todas estas
leituras acontecem antes da palavra. A palavra é um símbolo, que descreve um
conceito, que por sua vez se associa a algo como uma emoção, uma ideia, um
pensamento. Mas a mente do bebé ainda não simboliza e por isso o que ele lê é a
matéria orgânica que está na essência do símbolo: a temperatura, a textura, o
toque, a sensação e o sentir.
O bebé lê com o olhar, com a
ponta dos dedos, com a boca, com o corpo todo. Quando nos toca o rosto, o
nariz, a boca, e os aperta na sua mãozinha minúscula – quando nos segura o
indicador no punho fechado e parece não querer largar – quando nos puxa os
cabelos, quando leva à boca tudo o que toca, quando precisa de sentir nas mãos
a textura de todos os objectos – está a ler, a comunicar e a descobrir.
Todas as crianças são, por
conseguinte, e desde sempre, leitoras por excelência. E agora não resisto a
introduzir aqui uma nuance, uma pausa e uma diversão no significado desta
palavra: leitora. E diria assim: as crianças são leitoras, tanto no sentido de
ler o mundo, como no sentido de beber o leite que o mundo lhes dá.
Este segundo sentido da
palavra parece não fazer sentido nenhum. Deixem-me, então, contar-vos uma
história: um dia, teria o meu filho mais novo uns 3 anos, enquanto lhe lia um
livro que continha ilustrações de animais da quinta, ele disse, com ar
desconsolado: eu nunca vi uma vaca leitora, mamã... eu queria ver uma!
Na altura dei uma gargalhada
e tentei perceber que raio queria ele dizer. Não levei muito tempo a entender,
quando me lembrei de uma pergunta que ele me fizera há poucos dias: o que é
leitura, mamã? Ao que eu respondi e ele reagiu, desconfiado: leitura parece que
vem de leite! E desde aí, até hoje, com 13 anos, sempre que ouve a palavra
leitura, ou leitor, ele associa a leite. Deste modo, a vaca leitora é a vaca
que dá o leite – ou seja, vaca leiteira.
Claro que expliquei isto ao
meu filho, mas a mente dele continua a teimar nesta associação. Eu própria
fiquei a pensar nela: nas possibilidades de leitura, de desconstrução das
palavras; na geração de novos significados através de associações criativas. Fiquei
a pensar em como cada leitor lê (ou bebe) o mundo, ou o sumo do mundo (o leite)
à sua maneira, e de como isso alimenta, gera em cada um de nós a imaginação e a
fantasia, que por sua vez enriquece o mundo (o nosso, interior, individual, e o
exterior, o local de encontro com o outro).
Como já devem ter percebido,
foi desta história que nasceu a Vaca Leitora, o conto infantil publicado o mês
passado pela D. Quixote. A história de uma vaca que está farta do sabor do
pasto, sempre igual – está farta de estar sempre a ler a mesma coisa – e um
belo dia, já em desespero, começa a comer as folhas do jornal que o senhor
Manuel, o dono da quinta, distraído, deixou em cima do muro. A vaca começa,
então, a ruminar palavras e isso traz um sabor especial ao seu leite.
Ruminar palavras, brincar com
os seus significados, construir novas palavras, novos conceitos, novos mundos:
é isto que as crianças fazem ao brincar, primeiro com os objectos, as mãos, o
corpo, e depois com as ideias, as palavras, os símbolos, a imaginação. É isto
ser leitor: ler, ou beber o mundo para assim criar novos mundos.