Um vazio do tamanho da nossa ignorância
Hoje em dia está na moda achar que todos os livros são autobiográficos. Deixem que diga: não há livros autobiográficos, a não ser as autobiografias. E, mesmos nestas, não me parece que os autores sejam capazes de pôr a ficção de lado, simplesmente porque ninguém consegue tal proeza. Nós ficcionamos o tempo todo. Como é que alguém se consegue comover com um raio de sol a dissolver as nuvens de um dia cinzento, as ondas do mar, as estrelas no céu ou uma paisagem de sonho? Reparem: as estrelas são apenas explosões a milhares de milhões de anos-luz, a maioria já extintas. A água do mar é composta por um átomo de oxigénio para dois de hidrogénio, em estado líquido, e as respectivas pontes. Isso e mais uma enxurrada de minerais. Não tem mistério nenhum. Os raios de sol são uma ilusão, já que a luz, à prodigiosa velocidade aproximada de 300 mil quilómetros por segundo, é invisível; ou melhor, é ela que nos permite ver, mas não a podemos ver a ela. Ou seja, se nos limitássemos a ver o mundo tal como ele é, não haveria poetas.
Nem poetas, nem alma, nem transcendência, imaginação, fantasia, idealização. Não haveria humanidade. Ponto final.
Hoje em dia, porém, ninguém parece interessado em fantasia, imaginação, transcendência. A obra literária é apenas um pretexto para espreitar para dentro da vida do autor, como as crianças que espreitam pelo buraco da fechadura da casa-de-banho. Se a personagem sofre de depressão e melancolia então o autor deve sofrer de depressão e melancolia, se se suicida é porque conhece de certeza alguém que se suicidou (uma vez que ter-se suicidado o autor para escrever sobre isso seria disparatado), se no livro há uma família disfuncional é porque o autor deve ter crescido numa, se relata violência é porque certamente experimentou essa violência, se descreve um episódio de violação é porque foi violado, se conta a história de uma criança orfã é porque ou é ele próprio orfão ou conhece alguém, senão como é que conseguiria descrever tão bem todas estas situações? Isto não é ler, senhores, isto é tecer considerações sobre a vida alheia, um dos passatempos mais disseminados nestes estranhos tempos. O analfabetismo de ontem deu lugar a um outro tipo de iliteracia. Ler não é apenas decifrar um código linguístico; é, acima de tudo, deixarmo-nos transportar pelas palavras, abrir a porta para outros mundos, outras realidades.
Aqui há tempos um grupo de estudantes de uma das universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos redigiu uma lista de livros que considerava perigosos ao mesmo tempo que solicitava a sua remoção dos programas curriculares, justificando que a leitura de tais livros poderia perturbar emocionalmente os leitores e até levá-los ao suicídio. Da lista constavam obras como a Metamorfose de Kafka e outros grandes nomes da literatura clássica. Isto é preocupante. As universidades deixaram de ser locais onde se exercita o pensamento; a escola deixou de educar para a reflexão e expressão criativa, para o desenvolvimento das capacidades de abstracção das ideias. De que outra maneira se explica que estes estudantes tenham medo de pensar? A capacidade de pensar constitui o único e verdadeiro espaço onde a liberdade não tem limite. Perder esse espaço é perder humanidade, é tornarmo-nos prisioneiros do mundo concreto, aquele onde os raios de sol não passam de uma ilusão e as estrelas já morreram há muito no meio de um vazio imenso e obscuro, do tamanho da nossa ignorância.
Nem poetas, nem alma, nem transcendência, imaginação, fantasia, idealização. Não haveria humanidade. Ponto final.
Hoje em dia, porém, ninguém parece interessado em fantasia, imaginação, transcendência. A obra literária é apenas um pretexto para espreitar para dentro da vida do autor, como as crianças que espreitam pelo buraco da fechadura da casa-de-banho. Se a personagem sofre de depressão e melancolia então o autor deve sofrer de depressão e melancolia, se se suicida é porque conhece de certeza alguém que se suicidou (uma vez que ter-se suicidado o autor para escrever sobre isso seria disparatado), se no livro há uma família disfuncional é porque o autor deve ter crescido numa, se relata violência é porque certamente experimentou essa violência, se descreve um episódio de violação é porque foi violado, se conta a história de uma criança orfã é porque ou é ele próprio orfão ou conhece alguém, senão como é que conseguiria descrever tão bem todas estas situações? Isto não é ler, senhores, isto é tecer considerações sobre a vida alheia, um dos passatempos mais disseminados nestes estranhos tempos. O analfabetismo de ontem deu lugar a um outro tipo de iliteracia. Ler não é apenas decifrar um código linguístico; é, acima de tudo, deixarmo-nos transportar pelas palavras, abrir a porta para outros mundos, outras realidades.
Aqui há tempos um grupo de estudantes de uma das universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos redigiu uma lista de livros que considerava perigosos ao mesmo tempo que solicitava a sua remoção dos programas curriculares, justificando que a leitura de tais livros poderia perturbar emocionalmente os leitores e até levá-los ao suicídio. Da lista constavam obras como a Metamorfose de Kafka e outros grandes nomes da literatura clássica. Isto é preocupante. As universidades deixaram de ser locais onde se exercita o pensamento; a escola deixou de educar para a reflexão e expressão criativa, para o desenvolvimento das capacidades de abstracção das ideias. De que outra maneira se explica que estes estudantes tenham medo de pensar? A capacidade de pensar constitui o único e verdadeiro espaço onde a liberdade não tem limite. Perder esse espaço é perder humanidade, é tornarmo-nos prisioneiros do mundo concreto, aquele onde os raios de sol não passam de uma ilusão e as estrelas já morreram há muito no meio de um vazio imenso e obscuro, do tamanho da nossa ignorância.