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Showing posts from 2014

O Escritos & Escritores, em Avis

Sexta feira, 17 de Outubro. Viagem Lisboa – Avis. Chegámos pela hora do almoço. O Clube Náutico tem uma vista deslumbrante sobre as águas da albufeira. A comida é caseira, muito bem confeccionada. Durante o almoço, travámos conhecimento com alguns dos membros da ACA – Amigos do Concelho de Avis que tão bem nos acolheram durante o fim-de-semana que durou o encontro. Eu e Fernando Dacosta éramos os primeiros convidados a chegar. Fernando Dacosta está sempre a contar histórias. Para além de conhecer praticamente todos os nomes da grande literatura contemporânea, conviveu com figuras como Agustina Bessa Luís, Natália Correia, Agostinho da Silva, Ramalho Eanes, Raul Solnado, só para citar uns poucos. Chegou mesmo a entrevistar Salazar, o que lhe traz um manancial de histórias de que jamais me cansarei de ouvir.  A tarde de sexta feira estava reservada às escolas. Fui para a Escola Básica nº 3 Mestre de Avis, onde fui calorosamente recebida na Biblioteca Escolar. A conversa com os miúdos

Estrangeira

Acho que desconhecia o verdadeiro significado desta palavra até ao momento em que percebi que não só as pessoas à minha volta falam uma língua diferente: os gatos, os cães, as vacas, as ovelhas, os cavalos, também. É verdade, toda a criação fala uma outra língua. A primeira vez que tomei conhecimento do facto foi com um simples espirro. Estava numa aula de inglês, onde aprendíamos algumas canções, e uma delas era a famosa: "Ring-a-ring of roses  A pocketful of posies  A-tishoo! A-tishoo!  We all fall down..."  Estava a preparar-me para perguntar o que queria dizer aquela palavra esquisita, "A-tishoo!" , quando de súbito os meus ouvidos entenderam, ao ouvir a música numa gravação. Afinal era um espirro! De então para cá a surpresa tem sido constante e completa: os cães, nas raras vezes em que ladram, não fazem ão, ão! nem tão pouco béu, béu!, mas sim ruff, ruff! ou woof, woof! O miar dos gatos nem destoa assim tanto: em vez do miau, fru fru, temos um meo

My darling

Em Inglaterra toda a gente se chama de querido sem se conhecer de lado nenhum. É perfeitamente natural utilizar o dear em contexto formal, nomeadamente nas cartas em que nós apenas nos atrevemos a utilizar o V. Exa para cá e o Exmo. Sr. para lá. Mas as coisas não ficam por aqui. Quando o carteiro vos traz uma encomenda registada, e se despede com um see you, sweetheart, não precisam de corar. E se a senhora do centro de saúde nos brinda com um my darling no meio da troca de palavras que medeia encontrar a nossa ficha no computador e fazer o registo, não, não está a atirar-se a nós. É que aqui toda a gente se trata assim, é normalíssimo! Ao princípio estranhei, até pensei que não tinha ouvido bem. My dear? Ele disse my dear?, pensei, enquanto falava ao telefone com um funcionário da British Gas. Imaginem o que é telefonarem para a Portugal Telecom ou para a EDP e de lá dizerem, Oh, querido, obrigada por ter esperado! Ou na farmácia o empregado dizer: Aqui está o seu pedido, amor, de

O homem do xadrez

Ficava horas intermináveis sentado à mesa daquele café, tendo por única companhia um tabuleiro de xadrez. Jogava. Em silêncio, lentamente, como quem peneira a luz da tarde até esta se transformar em poeira fina de estrelas, lançada para cima do incêndio do crepúsculo. E assim o tempo passava, como passavam os burros no calor da estrada, lá fora, carregados de sacas a abarrotar de cereais e legumes, acompanhados por homens de idade curvilínea; ao mesmo tempo que a tarde se demorava nos pequenos remoinhos de vento seco que levantavam a poeira do chão. Jogava sozinho. Movia uma peça, e depois, com um suspiro, tomava a posição do adversário. Mas não se limitava a tomar o lugar do outro; aquilo exigia uma transacção plena de estados de alma. Para nos defrontarmos connosco próprios precisamos de vestir a pele do inimigo, dizia para os seus botões, enquanto os desabotoava. O xadrez é muito mais do que um jogo inocente de estratégias; o xadrez, é, acima de tudo, a essência da estratégia. Estr

O país dos contrários

À primeira vista parece que é só isso: os carros andam no lado oposto da estrada. Continuamos a pensar assim até ao momento em que nos sentamos ao volante, no lugar que, para nós, continua a ser o do passageiro. Já experimentaram? O que é que tem? É simples: lembram-se daquela sensação, pós tirar a carta, dos primeiros dias no trânsito? O nervosismo, a atrapalhação, a lentidão dos gestos, e estar constantemente a ouvir buzinas e nomes menos próprios? Porquê? Ainda não perceberam? Então vá lá que eu dou mais uma pista: se o volante está à direita, isso significa que a mão que se ocupa da caixa de velocidades é... isso mesmo: a esquerda! Mas as coisas não ficam por aqui, e o melhor é resumir assim: é tudo ao contrário (menos os pés, felizmente que não se lembraram dos pedais, que aí é que a gente dava em doida!), o que aí fazemos com uma mão, aqui fazemos com a outra, a saber: piscas, luzes, limpa pára-brisas, tudo, tudo, meus filhos, até aquele sinal que fazemos às pessoas paradas no p

Livros escolares? O que é isso?

Em Inglaterra, nas escolas primárias, não há livros escolares. As salas de aula estão cheias de livros: contos e rimas infantis, estórias com e sem ilustrações. Há-os em toda a parte, desde a creche ao sexto ano, devidamente adaptados à idade das crianças. Depois cada escola tem a sua biblioteca. Só encontramos livros escolares na escola secundária. Estes, no entanto, são propriedade da escola, e transitam de ano para ano, passando de mão em mão, entre os alunos. Deste modo, é possível um percurso escolar sem gastos em livros. Com o material passa-se a mesma coisa: as salas estão repletas de gavetas cheias de tudo o que é necessário. Tesoura, cola, tintas, pincéis, papel, canetas, lápis, borrachas, afias, réguas, esquadros, compassos, transferidores, sólidos geométricos, papéis de fantasia para corte e colagem, jogos variados destinados a auxiliar a aprendizagem, tudo o que possam imaginar, está na escola. Os livros auxiliares são disponibilizados em fotocópias, e cada criança tem

História Sem Memória

Não sei como me chamo, nem onde nasci, nem quantos anos passaram desde esse dia. Do tempo anterior a ter chegado vislumbro apenas uma névoa cinzenta, através da qual tento espreitar sem êxito. Perdi o rasto aos dias: num minuto cabem tardes inteiras. Como eu, há muita gente estendida nas inúmeras macas espalhadas em redor. Tenho a cabeça apoiada numa almofada de palha húmida que cheira mal. A cabeça é a única parte do corpo que me sustenta. O resto – o tronco inchado, a bacia, as pernas cortadas acima do joelho e o braço direito – mal os sinto, estão sempre dormentes e não me obedecem. As minhas duas pernas e o braço esquerdo de vez em quando vêm visitar-me de noite; o braço, coitado, atrás daquelas duas apressadas. Era assim que eu andava, sempre a correr de um lado para o outro. Adorava dançar, disso lembro-me bem, e até diziam que eu seria uma grande bailarina. Pouca sorte. Ouvi as mulheres que vêm dar-nos de comer dizer que pisei uma mina. Não sei o que é; só me lembro da avó Mi

Desempregada

Um desempregado é alguém que não trabalha, dirão. Então a pergunta que se deve colocar antes é, o que é trabalhar? No dicionário online da Porto Editora encontrei alguns significados:  preparar para um dado fim; melhorar (algo) através de trabalho mental; instruir; formar; treinar; exercitar; lidar com; enfrentar; negociar; empenhar-se; esforçar-se; fazer com arte; contribuir.  Há mais, mas em nenhum deles trabalhar pressupõe remuneração. Sendo assim, um desempregado é alguém que trabalha sem ser remunerado. As circunstâncias que o levaram ao desemprego, ou que o mantêm no desemprego, podem ser muito variadas; não é isso que está em causa. O que é importante é tentar perceber a origem da ideia de que os desempregados não trabalham. Porque essa é, quer queiramos quer não, a mentalidade que impera. A primeira coisa que me parece pertinente referir é que não se  é  desempregado,  está-se  desempregado. O desemprego é um estado, que pode ser mais ou menos temporário; não é um adjectivo que

Café do Cristiano

Boas tardes. Entre, menina, entre. Sim, viu logo pelo nome, não foi? O quê? Passa aqui todos os dias e nunca tinha visto este café? Deve andar distraída, que a gente já aqui está vai para cinco anos. É verdade: está aqui a minha patroa que não me deixa mentir. Então e o que vai ser? Um cafezinho? Uma meia de leite? Um bolinho? É o que está à vista: pastéis de nata, mil folhas, bolinhos de arroz, queijadas, travesseiros de Sintra... Olhe que são dos verdadeiros: trabalhei uns anos na fábrica das queijadas, em Sintra, a menina conhece? Foi lá que aprendi a receita. Também temos aqui umas broas de Natal e umas filhoses, estas foi a minha patroa que fez. Ora então é uma ucal e um pastel de nata? Sente-se, menina, sente-se que eu levo já. Aí na mesa do Cristiano Ronaldo; está a vê-lo aí na parede? Pois, ali também, e aqui nesta parede tenho mais três. É o café do Cristiano, pois, foi por causa do nome que viu que era português, não foi? Ah, mas não associou ao Cristiano Ronaldo? Então, mas