Distância de Insegurança - Diário da Pandemia

30 de Março 2020 

Ela seguia o pasmo, a incredulidade dos amigos e conhecidos durante a quarentena. Todos eles estrangeiros nesta terra de ninguém. Pelo menos assim parecia. Todos, menos ela. Já conhecia aquelas paragens há muito. Desde que se conhecia por gente. Sempre vivera em quarentena. Nada era novo. A sensação de perigo iminente, sempre a antecipar cenários catastróficos, desgraças, calamidades. Vivia-lhe no sangue. Era talvez a força que bombeava o coração, o medo. Um companheiro para a vida. O desastre acontecera há muito. Tanto, que não se recordava ao certo. Um naufrágio, um maremoto, uma enxurrada, um aluviamento de terras. Ficara só no mundo. A única sobrevivente. Ninguém testemunhara o seu desespero. Ninguém aliviara as suas feridas. Ninguém a consolara. Ninguém. E quando não há testemunhas, a realidade escapa-se-nos, os sentidos traem-nos. Se ninguém estava lá para ver, será que aconteceu mesmo? Terá sido imaginação? Se pudéssemos fechar os olhos e acordar deste pesadelo, não o faríamos? E então engoliu o choro, a dor aguda que a partiu ao meio, tudo em nome da sanidade mental. Da sobrevivência. Sem consciência de nada; um animal que segue em frente apesar do sangue. Das escaras que lhe entorpecem os passos. E seguiu. E voltou a ver-se rodeada de gente. O mundo tinha estado sempre lá. Apenas não a vira. Mas se o mundo não nos vê, é como se não existíssemos. Sentimos uma ameaça constante. De morte. A qualquer momento podemos desaparecer, dissolver-nos em pó. Sermos engolidos por um buraco negro. E para nos preservarmos, precisamos de nos esconder. Abrigar. Não dar nas vistas. Recolhermo-nos nos nossos casulos. Refugiarmo-nos na toca. Sabemos que só estamos em segurança se ninguém der por nós. Porque assim temos a certeza de que tal não pode acontecer. Se não pertencermos ao mundo, então este não nos poderá rejeitar. Vivemos assim com o medo dentro de casa. O medo mais terrível. Habituamo-nos. Cuidamos dele. Alimentamo-lo. Cerramos os dentes e aguentamos. E a dada altura deixamos de senti-lo como uma ameaça. A ameaça está lá fora, na rua, nos outros, no mundo; dentro da nossa toca, onde nos abrigamos com o medo, estamos em casa. Com o coração na boca e em sobressalto permanente, mas em casa. Sempre a prever uma desgraça, com o gosto da tragédia iminente na boca, com o susto nos olhos, com o pavor dentro dos sonhos. Mas em casa. De quarentena. Completamente sós e desligados do mundo. Nas poucas vezes que nos aventuramos à rua, desfrutamos do sol, do ar puro, dos espaços abertos, dos sorrisos, das conversas, mas sabemos que não pertencemos ali. Não fomos feitos para aquilo. É na reclusão que podemos fechar os olhos e descansar. E quando o mundo entra em quarentena, a incredulidade entra-nos pela porta sem pedir licença. É que de repente já não estamos sós neste abrigo; estamos todos. O mundo inteiro juntou-se a nós, refugiou-se connosco dentro de um medo comum. Pela primeira vez não nos sentimos aliens. Pela primeira vez pertencemos. E que estranheza, ver todas aquelas pessoas a comungarem dos mesmos sentimentos, da mesma angústia, da mesma perplexidade, do mesmo alheamento, do mesmo desespero. Tanta gente que não está habituada a isto, e se queixa constantemente das minudências mais banais; sim, para nós não passam de banalidades comezinhas. Ter medo constantemente, não conseguir chegar aos outros, perecer dentro de paredes de vidro, intransitáveis; sentir que não somos nada, que não temos poder para nada, que nada podemos fazer para alterar o rumo das coisas, que nada temos para dar, que o melhor é ficarmos imóveis até o mundo se esquecer de nós. Welcome to my world, apetece-nos dizer. E não tenham pressa. Sentem-se um bocadinho. Quando tudo voltar ao normal e regressarem às vossas vidas, eu ainda aqui estarei. Ainda aqui estou. Prisioneira do próprio medo. 

Unsafe Distancing - A Journal of the Pandemic


30 March 2020

She followed the astonishment and disbelief of her friends and acquaintances during the quarantine. All of them, foreigners in this no-man’s land. At least it seemed that way. Everyone but her. She had known this place for a long time. As long as she could remember. She had always lived in quarantine. Nothing was new. This feeling of imminent danger, always anticipating catastrophic scenarios, misfortunes, calamities. It flowed through her veins. It was perhaps the very force that made her heart beat: fear. A partner for life. The disaster had happened long ago. So long ago that she could not recall it with any certainty. A shipwreck, a tsunami, a flood, a landslide. She had been left alone in the world. The sole survivor. No one had witnessed her despair. No one had soothed her wounds. No one had consoled her. No one. And when there are no witnesses, reality eludes us, our senses betray us. If no one was there to see, did it really happen? Was it just our imagination? If we could close our eyes and wake up from this nightmare, wouldn’t we do it? So, she gulped back the tears, the sharp pain that broke her in two, all in the name of sanity. Of survival. Unaware of anything, like an animal who continues despite the blood, tripping on their scabs. And thus, she carried on. And she found herself surrounded by people again. The world had always been there. She just hadn’t seen it. But if the world doesn’t see us, we may as well not exist. We feel a constant threat. Of death. At any moment we could disappear, dissolve into dust. Be swallowed by a black hole. And so, to keep ourselves safe, we need to hide. Shelter. Not be seen. Gather ourselves up in our cocoons. Take refuge in our dens. We know we are only safe if no one notices us. Because this way we are sure it cannot happen. If we do not belong to the world, it cannot reject us. Thus, we keep indoors with our fear. The most terrible fear. We get used to it. We care for it. We feed it. We grit our teeth and bear it. And at some point, we stop regarding it as a threat. The real threat is out there, in the street, in others, in the world; within our den, where we shelter with the fear, we are at home. Heart in mouth in a constant somersault, but at home. Always expecting misfortune, the taste of impending tragedy in our mouth, fright in our eyes, dread in our dreams. But at home. Quarantining. Completely alone and disconnected from the world. On the few occasions we venture out into the street, we enjoy the sun, the fresh air, open spaces, smiles, conversations, but we know we do not belong there. We were not made for that. It is only in confinement that we can close our eyes and rest. And as the world begins to quarantine, disbelief comes through the door without asking permission. Suddenly we are not alone in this shelter; we’re all here. The whole world has joined us, sheltered with us in a common fear. For the first time we do not feel alien. For the first time we belong. And how strange, to see all those people sharing the same feelings, the same anguish, the same confusion, the same alienation, the same despair. So many people who are not used to this, and who constantly complain about the most insignificant details; yes, to us they are mundane trivialities. Enduring constant fear, not being able to see one another, perishing within impassable glass walls; feeling that we are nothing, that we are powerless, that the best thing to do is to stay still until the world has forgotten about us. Welcome to my world, we feel like saying. And don’t hurry. Sit down a while. When everything is back to normal and you return to your lives, I will still be here. I am still here. A prisoner of fear itself.       
 
Translated by Andrew McDougall 
Andrew McDougall was born in Glasgow and studied Portuguese and English literature at the University of Edinburgh. He has also lived in Sussex, Lisbon, Coimbra, Logroño, Vitoria-Gasteiz and Norwich, where he completed an MA in Literary Translation. His work has included co-translating a book by José Eduardo Agualusa, and translating a chapter by Ana Cristina Silva as part of the Escape Goat project (www.escapegoat.world), on which he also collaborated as an editor. He translates from Portuguese and Spanish.     

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