Distância de Insegurança - Diário da Pandemia

4 de Abril 2020 

O sol continua lá. As árvores, os pássaros. Tudo no mesmo sítio. Ainda olhamos o céu em busca de sinais. E evitamos os abismos da alma por os sabermos sem fundo. Onde podemos enterrar o medo, se nem carregá-lo nas mãos? Vivemos um dia a seguir ao outro. Continuamos a trabalhar, a lavar a cara de manhã. Há vozes que nos chegam e preferimos ignorar. De longe. Precisamos de nos concentrar no ruído. O silêncio traz pressentimentos fúnebres. Os cortejos de camiões militares carregando corpos. Como poderemos ser os mesmos depois disto? E agora, aqui? Nada mudou à nossa volta, as nuvens continuam a pairar. Chove. Sentimos frio. Ainda respiramos. Transplantamos a vida para dentro de quatro paredes, como se fosse possível. Dizemos às crianças que está tudo bem. Que vai ficar tudo bem. Dizemos a nós mesmos. Voltamos à infância, ao reino do absurdo, onde todos podemos ser reis, e princesas. Cremos ingenuamente naquilo que repetimos constantemente, em surdina, como uma prece. Sem palavras. Uma espécie de ruído branco que nos acompanha, um monólogo que entra pelos sonhos e nos tinge os pesadelos de presságios. Não queremos pensar na morte. Como se pensa na morte? Na própria morte? Na daqueles que amamos? E no entanto, não há pensamento que não passe por ela, que não se estanque nela, que não acabe nela. A morte omnipresente. Pessoas morrendo em casa sozinhas. Nos hospitais, sozinhas. Rodeadas de máquinas e pessoal médico que não tem tempo para estar, apenas para funcionar como uma máquina. E muitos deles sucumbindo. Falhando, como as máquinas. Perecendo como gente, já no lugar de doentes, deixando vago o lugar para outra máquina de assistência. Uma máquina humana que se emociona, mas que está programada para lutar até ao fim. Pela vida de todos nós. Uma máquina altruísta com o coração do tamanho dessa pandemia. Maior do que essa pandemia, do que o próprio universo. Tantos humanos que nos salvam com a força e a determinação das máquinas, e que damos graças por serem de carne e osso e falharem, porque não suportaríamos que fosse de outra forma. Que a morte não nos pudesse abraçar. Porque isso quereria dizer que já estamos mortos, há muito, sem o suspeitarmos. Ninguém quer pensar na morte mas não consegue deixar o fazer. Sem pensar, porque não se pensa na morte. Ouve-se falar. Fulano não resistiu e atirou-se para baixo do comboio. O número de suicídios disparou mas não pode ser notícia, porque o desespero também se contagia. Assim como o medo. Há casas onde a solidão escavou um fosso intransponível. Outras onde a violência diária se reproduz com a virulência da peste. Nem todas as casas podem ser refúgios. Nalgumas, a morte chega mais depressa. Aquelas almas abençoadas para quem a casa é um ninho, nem desconfiam. Delas não testemunham a guerra. As trincheiras foram escavadas fora do perímetro de segurança e nos hospitais. Das janelas o mundo parece normal. O sol ainda lá está. E lá ficará depois de tudo deixar de parecer normal. 

Unsafe Distancing - A Journal of the Pandemic 

4 April 2020 

The sun is still up there. The trees, the birds. Everything in its own place. We still look to the sky for signs. And we avoid the depths of the soul, knowing them to be bottomless. Where can we bury the fear, if we cannot even carry it in our hands? We live day-to-day. We keep working, washing our faces in the morning. Voices reach us that we would rather ignore. From far off. We need to concentrate on the noise. Silence brings mournful thoughts. Convoys of military vehicles carrying bodies. How will we ever be the same after this? And now, here? Nothing has changed around us, clouds remain hovering above. It rains. We feel cold. We are still breathing. We transplant a life inside four walls, as if that were possible. We tell the children that everything’s fine. That everything will be fine. We tell ourselves the same. We return to childhood, to the land of the absurd, where we can all be kings and princesses. We believe naively what we repeat over and over, whispering, like a prayer. Wordless. A sort of white noise that accompanies us, a monologue that enters our dreams and stains our nightmares with omens. We don’t want to think about death. How do you think about death? Your own death? That of those you love? And yet, there is no thought that does not approach it, halt by it, end up in it. Death is omnipresent. People dying alone at home. In hospitals, alone. Surrounded by machines and medical workers who don’t have time to be, only to function, like machines. And so many of them succumbing. Failing, like machines. Perishing like humans, already in the place of the sick, leaving their own place vacant for another support machine. An emotional human-machine, programmed to fight until the last for everyone’s life. A selfless machine with a heart the size of this pandemic. Bigger than this pandemic, than the whole universe. So many humans that save us with the strength and determination of machines, and we thank them for being flesh and bone and failing, because we wouldn’t have it any other way. If death could not embrace us, that would mean we were already dead, long dead, without having noticed it. No one wants to think about death, but we can’t stop doing it. Without really thinking, because you don’t think about death. You hear talk. Jimmy couldn’t bear it and threw himself under a train. The number of suicides has shot up but that can’t be a news story, because despair is also contagious. Just like fear. There are houses where loneliness has dug an impassable moat. Others where daily violence abounds with the virulence of the plague. Not all houses can be shelters. In some, death comes quicker. Those blessed souls for whom their house is a nest have no idea. From there they do not witness the war. The trenches were dug outside the safety zone and in the hospitals. From their windows, the world seems normal. The sun is still up there. And it will remain there long after everything else has stopped seeming normal.

Translated by Andrew McDougall 
Andrew McDougall was born in Glasgow and studied Portuguese and English literature at the University of Edinburgh. He has also lived in Sussex, Lisbon, Coimbra, Logroño, Vitoria-Gasteiz and Norwich, where he completed an MA in Literary Translation. His work has included co-translating a book by José Eduardo Agualusa, and translating a chapter by Ana Cristina Silva as part of the Escape Goat project (www.escapegoat.world), on which he also collaborated as an editor. He translates from Portuguese and Spanish.     

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