Distância de Insegurança - Diário da Pandemia

5 de Abril 2020 

Hoje o sol brilha e está calor. Calor. O Tesco tem fila à porta mas no parque de estacionamento, não. As toalhitas para limpar o varão do carrinho das compras esgotaram, parece, porque no seu lugar está um vaporizador e uns panos descartáveis. Será que não percebem que é a mesma coisa? Em vez de as pessoas apanharem o vírus no varão, vão apanhá-lo no frasco do vaporizador, a não ser que usem luvas. As medidas de segurança a relaxarem. Não estamos ao nível de um Brasil, e talvez nem de uns Estados Unidos, mas estamos muito longe de uma Alemanha, ou França, ou Portugal. O meu país a ser modelo de eficiência na contenção do vírus. Nós, aqui, ainda estamos meio a dormir. Talvez porque o sol brilhe e as pessoas se recusem a acreditar. A mim também me custa. Os miúdos estão em casa, e essa é a parte anormal. Estão em casa o tempo todo. É bom, claro, por enquanto, que ainda não nos fartámos uns dos outros. É preciso impor de novo uma disciplina há muito esquecida, porque cozinhar para quatro não é o mesmo do que cozinhar para três ou dois. O meu marido sai para trabalhar. Felizmente ainda há trabalho. E quando faltar? Quando faltar ficaremos melhor, porque mais protegidos. O trabalho dele é um risco, mas a falta de trabalho também. O risco está por todo o lado e nós habitualmente não pensamos nisso. Não pensamos nos milhares de mortos todos os dias. Não apenas desta doença. Como poderíamos? A urgência, porém, muda o rumo do pensamento. Eu dou por mim a pensar em cenários catastróficos. Calamidades à escala doméstica. Como o miúdo que morreu sozinho no hospital. Tinha treze anos. E tantas outras crianças, e tantos outros adultos. E se eu adoeço? E se adoece ele? E se adoecemos os dois? E se ficam os miúdos aqui sozinhos, sem notícias nossas, à espera do nosso regresso ou de um telefonema fatal? Os miúdos que já não são miúdos, um é um adulto jovem e o outro adolescente, mas em momentos destes voltam a ser miúdos e eu, mãe. A pensar nas praticalidades. Quando será a altura certa para os sentar e lhes dizer, filhos, se tal acontecer, estão aqui as passwords de todas as contas bancárias, as instruções para o pagamento da renda da casa, do council tax, da água, da luz e do gás. Se acontecer o pior... O que se diz nesse caso? O espírito prático é precavido. Ainda não chegou o momento. Um passo de cada vez. Apesar de na minha cabeça todos os passos estarem delineados para lá do limite. É apenas uma questão de focar a visão no dia de hoje e vislumbrar a penumbra do desconhecido para lá do horizonte. A sombra está lá. Está sempre. Na cabeça de uma mãe que prevê todas as derrocadas, as contorna como num percurso de obstáculos, às vezes cai e levanta-se como se não fosse nada, segura as lágrimas e segue em frente. E no seu delírio, acredita que consegue proteger as crias. Sim, porque o pior cenário, aquele que realmente me dá arrepios, era eles adoecerem gravemente, serem internados, e eu aqui em casa. À espera. Talvez a natureza seja burra, mas fala sempre mais alto. E hoje o sol brilha, e nada mais poderia trazer este calor de algo muito parecido com a esperança. 

Unsafe Distancing - A Journal of the Pandemic 

5 April 2020 

Today the sun is bright and hot. Warmth. At Tesco there are queues out the door, but not round the car park. It seems the wipes to clean the trolleys have run out, as in their place there is a bottle of spray and some disposable cloths. Don’t they see they might as well not bother? Instead of catching the virus from the trolley handle, people will catch it from the spray bottle, unless they are wearing gloves. Security measures are being relaxed. We are definitely not at the level of Brazil, or perhaps not even United States, but we are a long way from Germany, France or Portugal. My own country being a model of efficiency in containing the virus. Here, in England, we are still half asleep. Perhaps because the sun is shining and people refuse to believe it. It’s hard for me too. The kids are at home, and that’s the most unusual bit. They are at home the whole time. It’s been great, of course, so far; we’re not yet fed up with each other. I need to reinstate a long-forgotten discipline, because cooking for four is not the same as cooking for two or three. My husband goes out to work. Luckily there’s still work. And when there isn’t? We’ll be better off then, because we’ll be more protected. His work involves risk, but so does the lack of work. There is risk in everything but we get used to not thinking about that. We don’t think about the thousands of deaths every day. Not even just those from this illness. How can we? The urgency, however, changes the course of my thoughts. I find myself imagining catastrophic scenarios. Domestic-scale disasters. Like the boy who died alone in hospital. He was thirteen. And so many other children, and so many other adults. And what if I fall ill? What if he falls ill? Or both of us? What if the kids are left alone, without news of us, awaiting our return or a tragic phone call? Our kids aren’t kids anymore, one is a young adult and the other an adolescent, but at times like these they become kids again and I, mother. Thinking only about the practicalities. When will it be the right time to sit them down and say, look, if this happens, here are the passwords for all the bank accounts, the instructions for paying the rent, the council tax, water, electricity and gas. If the worst happens… What do you say then? Our practical self is cautious. That moment hasn’t arrived yet. One step at a time. Although in my head all the steps are drawn outside their lines. I must focus my vision on today, only glimpsing the shadow of the unknown beyond the horizon. The shade is there. It always is. A mother’s mind sees all the pitfalls, negotiates them like an obstacle course, sometimes she falls, picks herself up as if it was nothing, holds back the tears and carries on. Deluded, she believes she can always protect her children. Yes, because the worst scenario, the one that really gives me chills, is they themselves falling seriously ill, being hospitalised, and me here at home. Waiting. Nature might be daft, but it always speaks loudest. And today the sun is shining, and nothing else could bring this warmth of something very much like hope.

Translated by Andrew McDougall 
Andrew McDougall was born in Glasgow and studied Portuguese and English literature at the University of Edinburgh. He has also lived in Sussex, Lisbon, Coimbra, Logroño, Vitoria-Gasteiz and Norwich, where he completed an MA in Literary Translation. His work has included co-translating a book by José Eduardo Agualusa, and translating a chapter by Ana Cristina Silva as part of the Escape Goat project (www.escapegoat.world), on which he also collaborated as an editor. He translates from Portuguese and Spanish.     

Popular posts from this blog

Capitolina Revista - Uma publicação dedicada à literatura em língua portuguesa

Teimosia Crónica na Descendências Magazine

A Cabana do Tio Tom