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Showing posts from April, 2016

Os Comeres dos Ganhões

Da Páscoa da minha infância, o que retenho é o traseiro de um senhor chamado Vadis. O Aníbal gostava da piada: é hora de ver o Quo Vadis! E todos os anos a cena se repetia. O meu primo Aníbal era ateu e comunista convicto. A livraria que fundou em Estremoz e onde distribuía livros proibidos pela censura retém o seu nome até hoje. Era também um excelente cozinheiro. Arrisco dizer que em sua casa se comia melhor do que nos mais bem cotados restaurantes da região. A Cozinha dos Ganhões, que continua a integrar a FIAPE, em Estremoz, foi ideia sua e de outros seus compadres. Os Comeres dos Ganhões , editado em 1994 pela Campo das Letras, é uma colectânea de receitas típicas muito original: antes de cada receita são reunidos testemunhos sobre a forma como aquele prato (não) era comido nos tempos em que a fome e a miséria grassavam no Alentejo. São histórias de pasmar: o trabalho de sol a sol, ou ver a ver, durava enquanto houvesse luz. A açorda pelada, assim designada porque quando c

A minha apresentação no Festival Literário da Madeira, Abril de 2016

«Há livros que se premeditam, há livros que nos acontecem» Eduardo Prado Coelho  A palavra premeditação tem, para mim, uma conotação quase imediata com frieza e calculismo; mais depressa a associo a crimes inconfessáveis do que a livros. Quem sabe por isso, ao ler esta frase, comecei, involuntariamente, a transformar o seu significado noutra coisa qualquer. Deste modo, dividi a palavra em duas: pré + meditação A palavra meditação pode ter dois significados:  - Acto de reflectir, pensar sobre um assunto de forma profunda;  -  Exercício mental que consiste em bloquear as ondas mentais, esvaziar a mente de todo e qualquer pensamento, normalmente com o auxílio de um mantra. Estes dois significados parecem, aparentemente, contraditórios. Como é que se reflecte sobre um assunto esvaziando a mente de pensamentos? A não ser que a mente passe a reflectir como reflectem os espelhos, tal parece tarefa impossível. Por outro lado, existe uma diferença subtil entre dizer, “eu p

O meu contributo para o Festivalinho Literário Infantil da Madeira, Abril de 2016

«Todas as crianças do Mundo devem ser concebidas como seres nascidos para ler» Lídia Jorge "Falamos em ler e pensamos apenas nos livros. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoção nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar." Mia Couto Eu diria que, nisso, as crianças são exímias. Já dentro da barriga das mães os bebés lêem: lêem o bater do coração, o sopro da respiração, o fluxo sanguíneo, a digestão, o trânsito intestinal e todo o universo de ruídos que acompanha estes mecanismos. Lêem a obscuridade e a luz, vermelha porque atravessa a carne (como a luz que se incendeia quando olhamos para o sol através dos dedos), lêem a obscuridade e a luz, dizia, que com eles mora naquele espaço aquático, morno, aconchegante que é o útero materno. Ler é ver e ouvir o mundo e, acima de tudo, senti-lo. Uma vez fora do út

Um vazio do tamanho da nossa ignorância

Hoje em dia está na moda achar que todos os livros são autobiográficos. Deixem que diga: não há livros autobiográficos, a não ser as autobiografias. E, mesmos nestas, não me parece que os autores sejam capazes de pôr a ficção de lado, simplesmente porque ninguém consegue tal proeza. Nós ficcionamos o tempo todo. Como é que alguém se consegue comover com um raio de sol a dissolver as nuvens de um dia cinzento, as ondas do mar, as estrelas no céu ou uma paisagem de sonho? Reparem: as estrelas são apenas explosões a milhares de milhões de anos-luz, a maioria já extintas. A água do mar é composta por um átomo de oxigénio para dois de hidrogénio, em estado líquido, e as respectivas pontes. Isso e mais uma enxurrada de minerais. Não tem mistério nenhum. Os raios de sol são uma ilusão, já que a luz, à prodigiosa velocidade aproximada de 300 mil quilómetros por segundo, é invisível; ou melhor, é ela que nos permite ver, mas não a podemos ver a ela. Ou seja, se nos limitássemos a ver o mundo ta